Os Depeche Mode zangados com o estado do mundo

Spirit não é um disco ousado, mas também não é um registo só para cumprir calendário. Os Depeche Mode continuam a querer desafiar-se.

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Depeche Mode: um disco de interrogações, com a voz de Dave Gahan a questionar como é que o mundo chegou até aqui Anton Corbijn

“Acima de tudo continuamos a querer divertir-nos e a desejar novos desafios”, dizia-nos Andrew Fletcher em 2013, quando os Depeche Mode tinham acabado de lançar Delta Machine, o disco que antecedeu o seu 14.º álbum de estúdio, o novo Spirit. Nessa altura escrevíamos que, a par dos U2, eram a última banda de estádio da sua geração, embora tenham quase sempre exposto uma espécie de paradoxo: são encarados como grupo que arrasta massas mas parecem funcionar para minorias.

São também sobreviventes. Ao longo dos anos foram superando todas aquelas coisas que fazem parte da mitologia de qualquer grupo com longa carreira, como as zangas, as separações, as tendências do mercado e a saída de um dos fundadores, Alan Wilder, talvez o seu membro mais influente quando se pensa na vertente mais exploratória do som do grupo. Por vezes bandas do seu estatuto são acusadas de lançar discos apenas como pretexto para mais uma digressão, mas nem parece ser o caso.

O novo álbum é talvez o mais politizado de sempre da banda. Tendo em atenção o contexto sociopolítico mundial, a opção não constituiu propriamente uma surpresa, embora o foco tenha sido quase sempre a demanda espiritual individualizada. Dir-se-ia que, desta vez, os Depeche Mode resolveram apelar ao surgimento de uma consciência colectiva que consiga abalar um certo adormecimento global. Fazem-no com uma colecção de canções onde mostram frustração pelo estado do mundo, com Trump e o "Brexit" em fundo, embora a demanda seja mais espiritual do que politicamente activista.

Produzido por James Ford (Simian Mobile Disco, Arctic Monkeys, Florence + The Machine) é um disco de interrogações, com a voz de Dave Gahan questionando como é que o mundo chegou até aqui, respondendo em Worst crime com desinformação, líderes confundidos, hesitações, apatia e ausência de princípios de educação. Uma situação de tal forma sombria que em Going backwards é aludido que podemos estar num processo de retrocesso à “mentalidade da caverna”. E quando Martin Gore se junta na voz a Dave Gahan o ambiente não melhora: “We feel nothing inside/ Because there’s nothing inside” cantam nessa mesma canção.

Na balada Fail, Martin Gore chega mesmo a cantar que “Our conscience is bankrupt/ Oh, we’re fucked”, mas apesar deste aparente desespero existe também espaço para clamores de resistência, como em Where’s the revolution, ou para esperança, como em Eternal, como se apesar do clima sombrio, nunca deixassem de acreditar na redenção da humanidade.

Do ponto de vista sonoro existem menos novidades. Nos últimos álbuns não comprometeram em nada o que haviam feito para trás e até foram introduzindo, aqui e ali, elementos novos. Agora volta a acontecer. O som é globalmente mais descarnado, existem sons electrónicos virulentos e climas nebulosos. Não precisam de muitos elementos para revelarem precisão e robustez, com canções electrónicas de dinamismo rítmico marcadas pelos ambientes obscurecidos, e outras mais envolventes, delimitadas pela sensualidade das formas.

Não é um disco ousado, mas também não é um registo só para cumprir calendário. Andrew Fletcher tem razão: eles continuam a querer desafiar-se.

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