Orlando Julius & The Heliocentrics: A ressurreição do grande criador

Fela Kuti imitou-o e criou o Afro-Beat; James Brown ficou de boca aberta ao vê-lo actuar; quando se mudou para os EUA, Marvin Gaye ia espreitar cada ensaio da sua banda; Lamont Dozier pilhou-o e fez uma pipa de massa à sua conta. É Orlando Julius, o grande génio nigeriano, de regresso num disco a meias com os maravilhosos Heliocentrics.

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Orlando Julius
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Malcolm Catto dos Heliocentrics

Não é um casamento feito no céu, é um casamento feito numa pista de dança: à frente, o obscuro criador de enormes e saxofónicos riffs, Orlando Julius, homem que influenciou Fela Kuti e deixou James Brown de queixo caído; atrás, uma das mais extraordinárias bandas do que, à falta de melhor expressão, podemos chamar música negra, os Heliocentrics — que não só têm obras-primas em nome próprio (Out There) como também serviram de banda-suporte a DJ Shadow (The Outsider) e gravaram tremendos discos (Inspiration Information) a meias com o também-um-pouco-obscuro-mas-menos músico etíope Mulatu Astatke. O resultado, Jaiyede Afro, é uma colecção de canções que se atiram de imediato à anca de cada ouvinte — e um dos mais inesperados regressos que a música pop do século XXI esperava acontecer.

A obscuridade de Orlando Julius pode medir-se pela quantidade e qualidade da informação que encontramos disponível acerca dele: o All Music Guide, por exemplo, limita-lhe a obra a quatro discos; e Super Afro Soul, a sua obra-prima de 1966, que o tornou um herói na Nigéria, aparece com data de 2000 — ou seja, para um dos maiores sites de música do mundo, o principal disco de Julius só existe desde que a editora Strut, que se dedica a todas as coisas africanas, reeditou o disco (em 2000; a Strut é também responsável por Jaiyede Afro, a estrepitosa colaboração entre Julius e os Helios). A favor do All Music Guide, diga-se que na secção dedicada à biografia do músico acertam na data de Super Afro Soul — mas esquecem vários detalhes, como o facto de uma pura trapaça o ter deixado do lado errado da história.

No ano de 1981, os Odyssey gravaram uma canção chamada Back to my roots, hino disco-sound que galgou tabelas de vendas pelo mundo inteiro fora. O tema fora escrito (e editado) em 1977 pelo admirável compositor americano Lamont Dozier, que foi um terço dos Holland-Dozier-Holland, trio responsável por inúmeros êxitos da Motown, cantados pela extraordinária Martha Reeves (com as Vandellas) ou pelas Supremes. Mas oiçam com atenção o tema e depois comparem a linha melódica à guitarra de Ashiko, tema que aparece num disco de Hugh Masekeela: são iguais. O responsável por essa melodia? Exacto: Orlando Julius, que ao contrário de Masekeela não foi creditado na canção que Dozier editou em 1977.

A história é-nos contada, quase trinta anos depois, pelo próprio Orlando Julius, que atende o telefone em sua casa, na Nigéria. Este homem editou pelo menos três discos extraordinários — Super Afro-Soul, Disco Hi-Life e Orlando Julius and the Afro-Sounders— a que os ocidentais tiveram acesso das formas mais estranhas: no meu caso, um amigo que passara anos fora de Portugal emprestou-me uma cassete com Super Afro-Soul (incompleta, sei-o hoje); os outros dois saquei-os mais tarde, através do motor de pesquisa peer-to-peer Soulseek.

Procure-se por toda a Internet e encontram-se vários discos em LP ou reedições e compilações em CD, com escassa informação; tanto quanto é possível entender, Julius existiu durante um curto período de tempo, entre meio da década de 1960 e meio da de 1970 e nunca mais deu sinais de vida. Nada mais errado: “Tenho feito imensa música, tenho estado a gravar sem parar — a fazer arranjos, a inventar novas melodias, a criar ritmos. Tenho esse talento, dado por Deus, não deixei de o trabalhar. A maior parte dos discos só saíram na Nigéria e se calhar não há muita informação sobre eles, mas nunca deixei de compor e compor”.

Ouvimos isto e ficamos de boca aberta: porque é que um tipo que a meio da década de 1960 era um deus no seu país natal, que foi recrutado por músicos a viverem nos EUA, que tinha James Brown na lista de fãs, resolveu ficar tantos anos no seu país, na mais plena obscuridade, sem tratar da sua obra? “Bem, eu sou nigeriano”, diz Julius em tom meio atónito — mais tarde perceberão porquê: é que houve aqui um ligeiro problema de (tele-)comunicação. “Foi na Nigéria que sempre tive os meus fãs. Tenho um estúdio em minha casa onde gravo e a minha mulher dança enquanto componho e canta nas minhas faixas. Porque é que haveria de sair?”


Lei de Coulomb
Quando o senhor Julius “era pequenino”, chegava da escola e a sua mãe “cantava para [ele]”; Julius “tocava flauta por cima das melodias” da mãe e esses, diz-nos, constituem até hoje “os melhores momentos” da sua vida. Julius, um homem de uma humildade desarmante, diz ter tido “muita sorte porque na escola [lhe] ensinaram vários instrumentos”. Além da flauta, “havia percussão por todo o lado”.  A frase não acaba aqui: depois de uma pausa e não sem alguma malícia, Julius atira: “Onde houver percussão eu estarei sempre lá”.

Ainda garoto enamorou-se do saxofone alto. O seu pai “morreu quando [Julius] ainda era pequeno”, pelo que este enorme saxofonista não pôde “continuar os estudos depois do liceu”. No fim da adolescência mudou-se para Ibadan e o seu talento era tanto que começou logo “a ganhar a vida como músico”: aos 18 o rapaz já tocava nos Top Aces, a banda de Eddy Okunta, estrela popular. Rapidamente se tornou o líder da banda e em 1964 criou a sua própria banda, os Modern Aces e alcançou o êxito com uma sequência de singles. Jagua Nana, de 1965, tornou-os “estrelas da noite para o dia”.

Isto não aconteceu por acaso: antes de mais, eles “ensaiavam todos os dias em casa” e tinham “uma residência em Ibadan: nunca [paravam] de tocar”. Julius tinha acesso à música ocidental, o que “mudou tudo”: “Eu sabia que os ritmos africanos seriam a espinha dorsal do que tinha a fazer. Mas andava a ouvir Otis Redding, até mesmo o Coltrane, pelo que a soul e o jazz entraram no que veio a ser o Super Afro Soul”.

Agora, como é que Julius encontrava estes discos, não nos perguntem, porque se o inglês do mestre não é famoso, a qualidade do sinal das linhas de cobre que cobrem a Nigéria é-o ainda menos: metade da conversa perdeu-se algures numa alínea da lei de Coulomb. Apanhámos um par de afirmações engraçadas: primeiro, que Fela Kuti era visita regular das actuações de Julius em Ibadan; depois que já nesta altura James Brown era uma inspiração para a sua música e que Ijo Soul, faixa que surge na reedição que a Strut fez em 2000 de Super Afro Soul mas que julgo não pertencer à versão original do disco, é baseada em I got you (I feel good).

Há detalhes caricatos na história de Julius. Ele diz depois de ter êxito “os engenheiros deixavam[-no] tocar durante mais tempo”: e assim, caríssimos leitores, nasceu o Afro-beat, género musical em que tema com menos de seis minutos é pouco. Tão simples quanto isto, diz Julius: como era conhecido os engenheiros de som faziam-lhe a vontade. Realidade ou mito? Imprima-se o mito, que é delicioso.

Em 1974 Julius estava nos EUA, com uma nova banda, os Umoja, que abriam concertos para gente como Isaac Hayes, Curtis Mayfield, Gil Scott Heron ou Marvin Gaye. “O Marvin Gaye era um amigo. Vivíamos perto, pelo que ele passava muito tempo connosco, a ouvir-nos tocar. Levava-nos sempre em digressão com ele”. Quem também levava os Umoja em digressão era Hugo Masekeela, que os adoptou como sua banda de palco. Masekeela “apareceu um dia quando [Julius e os Umoja estavam] a ensaiar Ashiko, uma composição [de Julius] e adorou-a”.


Sem ver um tusto
O que se segue é uma história longa e sinuosa que resumidamente acaba assim: Julius é “convidado a participar no disco que Lamont Dozier estava a fazer”, passaram-lhe “uma cassete”, ele colocou a sua linha de guitarra de Ashiko em Going back to my roots, além de fazer outros arranjos e só anos mais tarde é que descobriu que “a canção estava em todas as discotecas, em todo o sítio e não me tinham dado créditos”, o que traduzido do “legalês” musical significa que Dozier e Masekeela eram, oficialmente, os autores de um tema que, na realidade, é de Julius, porque a canção foi refeita em torno do riff de Julius — que não viu um tusto.

Quinton Scott, o dono da Strut, conta-nos que conheceu Julius “através de um tipo chamado Kayode Samuel, numa terra chamada Ekostar, corria o ano de 2000. Kayode tinha encontrado [Julius] em Lagos e juntos começámos a trabalhar na reedição do seu álbum clássico Super Afro Soul. O Orlando ficou no Reino Unido durante algum tempo, para nos ajudar a promover o disco e demo-nos muito bem desde o início — ele é um tipo muito humilde e generoso”.
Na pequena biografia de Julius que Scott escreveu lê-se que Julius viveu nos EUA até 1998, quando se instalou em Lagos — ora, isto significa que possivelmente entendemos mal partes do discurso de Julius, já que ao escutá-lo ficámos com a ideia (erradamente) clara que ele havia retornado para o seu país mais cedo.

“Quando a Strut quis reeditar os meus discos”, diz Julius, “fiquei muito contente. Fizeram-no com tanto amor — e disseram-me ‘Devias fazer mais discos’ e eu gostei de ouvir isso”. Julius não fazia ideia de que Scott “andava a conversar com o Jake Ferguson e o Malcolm Catto dos Heliocentrics acerca de ideias para projectos, e no início de 2013 o nome do Orlando Julius surgiu, como possível colaborador”.

Na versão de Julius, ou na versão que entendemos do que Julius disse, os Heliocentrics “não conheciam a [sua] música mas aprenderam-na depressa”; na de Scott, os Heliocentrics “já eram grandes fás”, o que faz mais sentido para quem conhece a obra dos Helios e sabe a que grau estes homens levam a sua melomania. “Nós sabíamos que ele continuava a tocar com regularidade”, diz-nos Scott, “e quando fizemos a proposta de fazer um disco a meias tudo se desenrolou muito rapidamente”. 

Agora, uma nota, para que entendam a nossa dificuldade em perceber o discurso telefónico de Julius. Na biografia de Julius que Scott escreveu lê-se que “problemas com a electricidade da Nigéria [...] causaram várias explosões no material de estúdio [de Julius]”. Um amigo meu, engenheiro que deu formação na Nigéria há uns anos, descreveu-me o sistema eléctrico e de telecomunicações do país como o maior pesadelo que alguma vez encontrou em quase vinte anos de profissão.

Julius acrescenta que por vezes lhe roubavam equipamento e a dado momento pareceu-me ouvi-lo dizer que tinha receio de sair de casa, devido ao caos em que ao país vive. Mas já não sei em que acreditar. Adiante. Segundo Orlando Julius, os Heliocentrics não só “apanharam a [sua] música num instante” como também havia uma espécie de “espírito comum” a uni-los; Julius fala com muito carinho das conversas que ele, Jake e Malcolm tiveram sobre James Brown. “Eles eram grandes fãs do James Brown, conheciam tudo e muito rapidamente fizemos versões muito boas”. Uma faixa de James Brown, In the middle, entra no disco: há muitos anos, Brown assistiu a um concerto de Julius em Ibadan e depois quis conhecê-lo. Disse-lhe “You’re bad, man”, o que Julius achou esquisito, até perceber que “ser bad” era um elogio.

Orlando conta que quando ensaiavam a sua música bastava-lhe dizer “E se o baixo entrasse aqui?” ou então “Um pouco mais de bateria” para tudo rapidamente se encaixar. Jake Ferguson, em conversa connosco, realça que “os Heliocentrics não foram apenas uma banda de suporte — fomos músicos e produtores no que foi uma verdadeira colaboração”.

O primeiro concerto de Julius com os Helios foi em Abril de 2013, no Banlieues Bleues festival em França, “bem antes das gravações começarem”, diz Scott. O disco consiste de peças antigas de Orlando Julius que nunca tinham sido gravadas (além da de Brown, mas essa existe em formato físico), re-arranjadas de modo a soarem ao futuro que o século XXI ainda não ouviu.

”Fui à internet”, conta Julius, num tom de garoto a quem deram rédea livre para se lambuzar numa loja de doces, “e vi tanta gente a escrever em línguas diferentes que adoravam o disco — isso deixou-me muito contente”. Todo o amor que Julius receba agora é pouco. Os Heliocentrics, ao que apurámos, estão em negociações para tocarem em Portugal em 2015. Por amor da santa, juntem mais uns quinhentinhos e tragam o mestre Julius. A electricidade cá é impecável.

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