Oportunidades perdidas no Magrebe

Hédi Kaddour escreveu uma história que mistura a Hollywood dos anos 20 com as areias do Magrebe, com revolucionários em Paris, e com elites árabes. Com Os Preponderantes recebeu o prémio de romance da Academia Francesa de 2015.

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O francês Hédi Kaddour (n. 1945) iniciou-se na escrita literária quase por acidente: traduzia um poema de Georg Trakl quando se apercebeu de que aquilo que estava a escrever já pouco tinha a ver com o original alemão, fechou então o livro e continuou o poema. Depois publicou, ainda na década de 1980, alguns livros de poesia, e em 1996 começou a escrever um romance. “Os meus poemas eram muito narrativos, tinham dentro algo que se assemelhava muito a uma história. Aqueles versos poderiam também ser contados em parágrafos, e foi isso que decidi fazer”, disse Kaddour em entrevista ao Ipsilon aquando da sua visita a Lisboa para a apresentação do seu mais recente romance, Os Preponderantes, vencedor do Grande Prémio da Academia Francesa 2015.

Este é o terceiro romance de Hédi Kaddour (nascido na Tunísia, de pai tunisino e mãe francesa). Ambientado nos anos de 1920, algures numa cidade fictícia no Magrebe, Nahbès, conta-nos da resistência à independência por parte de alguma elite árabe que vivia entre “dois mundos” culturais. Não é um romance histórico, não tem essa preocupação, mas sim uma história que mergulha na História. A ideia da escrita deste romance surgiu a Kaddour quando numa biblioteca francesa encontrou documentos que narravam as aventuras de realizadores de cinema de Hollywood que na década de 1920 foram para o Magrebe fazer filmes orientalistas, e também de actores, entre os quais Rudolph Valentino. Interessou-lhe o “terceiro olhar” que os americanos teriam sobre aquele mundo. Hollywood como sinónimo da modernidade e da liberdade num mundo tradicionalista – apesar dos muitos rasgos introduzidos por quem à época estudava em França. Ao escritor interessavam as tensões provocadas pela situação e os conflitos entre os líderes tradicionais, os colonos franceses, e a elite árabe afrancesada. Quase ao mesmo tempo, Hédi Kaddour encontrou na biblioteca da Assembleia Nacional Francesa algo que desconhecia: um projecto de lei para uma “certa forma de independência” dos protectorados franceses no Magrebe. “Até os políticos da direita assinaram o documento. Oitenta por cento da assembleia estava pronta para avançar com a ideia de independência, e em quatro meses a elite dos protectorados conseguiu destruir essa ideia. A independência teve de esperar ainda mais trinta anos. Até o princípe Murat e o Barão de Rothschild assinaram o documento.”, conta Kaddour.

Cinema

O romance Os Preponderantes apresenta ao leitor as diferentes visões de um doloroso encontro de dois mundos em conflito. No centro, está Rania e a sua família. Esta mulher de 23 anos, viúva, cujo marido militar “desaparecera num fragor de obuses”, é uma figura subsersiva: educada como uma princesa árabe, mas ao mesmo tempo assimilando a cultura francesa. Lê Rousseau e o Sheik Abdu (um pioneiro da reforma do Islão e a quem os tradicionalistas chamavam ateu). “Mas ela não é uma Bovary ordinária”, diz Kaddour a rir. Rania, contra a vontade do pai e do irmão, mantinha o estado civil de viúva, apoiando-se no facto de ter “como que uma desvantagem, era mais alta do que a maioria dos homens”. Assim mantinha a liberdade que lhe interessava, relacionando-se com uma jornalista francesa que entretanto chega à cidade e que surge como a centelha de um mundo moderno libertado. As pressões familiares não cessam, mesmo quando foi convidada para tomar conta da casa de um tio, irmão do pai, que fora ministro e “um grande amigo da França”. “A sua sobrinha queria saber mais do que os homens, não era bom nem para ela nem para a sua família.”

O irmão de Rania, Raouf, a meio do romance vai para Paris, onde ao mesmo tempo que completa a sua educação sentimental se envolve politicamente em ambientes anti-coloniais nacionalistas. Mas antes, no hotel da cidade assistimos a vários choques quando as personagens se encontram, e aos seus pontos de vista (dos americanos, dos colonizadores e dos colonizados). Numa sociedade colonial muito hierarquizada, nestas primeiras décadas do século XX, a religião não tinha o peso político dos dias de hoje, lembre-se que por esta altura o novo senhor da Turquia Kemal Atatürk, sublinhava a laicização do estado, e a sua mulher servia de modelo a muitas mulheres das elites magrebinas, sobretudo as educadas na cultura francesa. Para Kaddour, Os Preponderantes é sobretudo “um romance sobre oportunidades perdidas”, diz. “Fiquei impressionado com os movimentos das elites [os preponderantes de que fala o título], como em tão pouco tempo conseguiram adiar por dezenas de anos um movimento de emancipação colonial, ainda por cima estando o mundo a lidar com a ‘independência à inglesa’. Foram esses conflitos internos que me interessaram, como se articularam. E perceber também a influência estrangeira, no caso particular da indústria americana que beneficiou das infra-estruturas montadas pelos franceses.”

Ao lermos este romance depressa nos apercebemos da força das suas imagens, de como chegam ao leitor de maneira quase cinematográfica. As personagens foram desenhadas, e assim se apresentam diante dos olhos do leitor, com precisão e delicadeza. Ao longo da narrativa, muito pontuada com referências ao cinema, as cenas parecem quase sempre propositadas para a composição de um guião. Quisemos saber se foi essa mesmo a intenção do autor, por se tratar de um romance em que o cinema desempenha um papel quase fulcral. Hédi Kaddour mostrou-se quase surpreendido. “Não o foi. Ao escrever tenho sempre presente uma regra da arte do romance que foi enunciada ainda no século XIX por Joseph Conrad, no romance O Negro do Narciso. Diz ele que o poder da palavra do escritor tem que fazer o leitor ouvir, fazer sentir, e fazer ver. Ele escreveu isto antes do cinema. Eu, em toda a narrativa que escrevo, e não apenas neste romance – que o acaso quis que tivesse cinema na intriga – procuro respeitar sempre este princípio. Quando lemos os grandes autores, por exemplo Dickens, Flaubert ou Tolstoi, percebemos que também aplicam esta regra que Conrad enunciaria mais tarde. Está na arte do romance, na sua natureza.”

Ao lermos este livro ele quase pode surgir como uma espécie de dever de memória para com os independentistas magrebinos. Mas não há nele qualquer posição política nem sequer uma crítica velada aos preponderantes. Não foi de facto essa a vontade do escritor. “Quando escrevo não quero passar nenhuma mensagem para o leitor, não tenho nenhum programa. Quando começo um romance não sei sequer como vai acabar. Ele vai-se construindo. O meu único inimigo na escrita, e aquilo que tenho sempre presente, é o ‘lugar comum’, é isso que mata a escrita.” Kaddour confessa que as suas influências são muitas, mas de entre elas destaca, inesperadamente, dois nomes de autores norte-americanos, Faulkner e Don DeLillo, e ainda Thomas Mann, e o francês Claude Simon. “Um amigo disse-me muitas vezes que eu escrevo porque queria receber um telegrama que dissesse: ‘o romance está bem escrito’. Assinado por Thomas Mann.”

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