O maverick do cinema português

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ENRIC VIVES-RUBIO

Uma retrospectiva recente na Cinemateca e um catálogo tiraram António de Macedo da invisibilidade a que parecia condenado. A seguir virá um documentário. É enfim a redescoberta de um caminho marginal - e talvez sem descendência - no cinema português

Quando tinha 13, 14 anos, António de Macedo considerava os romances de Júlio Verne de uma "cretinice completa". Para o ex-realizador - é assim que se descreve - e escritor de livros fantásticos e de ficção científica (além de ensaios sobre esoterismo e religião) de 81 anos, "quem inaugurou a verdadeira ficção científica foi o H. G. Wells, porque criou um paradigma novo". "Quando o Júlio Verne fez a sua Viagem à Lua, inventou um canhão que não era invenção nenhuma. Os canhões já existiam no seu tempo, ele limitou-se a aumentar o tamanho e a potência", argumenta. Se Wells continua a ser um grande modelo para Macedo, Verne terá cometido um crime indesculpável: "É chato que se farta".

Parecendo que não, ao recordar as leituras de juventude Macedo está a materializar, por interpostos artistas, uma característica que o diferenciava dos cineastas seus contemporâneos, com quem formou a geração de 60 do cinema português, o chamado Cinema Novo. "Eu faço cinema de conteúdos e não um cinema de formas. Os meus colegas eram muito formalistas, muito gramaticais", diz no escritório do seu apartamento apinhado de livros onde nos recebe e onde escreveu a maior parte do seu trabalho. Fala no presente do indicativo - esquecendo-se momentaneamente de que já não filma há mais de 15 anos.

Contra a "escola do bocejo"

Em finais dos anos 50, quando escrevia A Evolução Estética do Cinema, uma história da sétima arte, António de Macedo precisou de gravuras para a ilustrar. Indicaram-lhe "um rapaz que estava a estudar em Londres", a quem escreveu a pedir se não lhas arranjava na Fototeca da cidade. A missiva era endereçada ao "Excelentíssimo Senhor Fernando Lopes". "Conhecemo-nos porque começámos a ir às estreias uns dos outros. Quando se estreou Os Verdes Anos, fiquei a conhecer o Paulo Rocha e o [António da] Cunha Telles. Quando se estreou o Belarmino a mesma coisa, e em vez de nos tratarmos por excelentíssimo senhor passámos a tratar-nos por tu, ficámos amigos, formou-se um grupo", conta. Um grupo a que se juntaram Alberto Seixas Santos, José Fonseca e Costa, António-Pedro Vasconcelos e que se definia pela "oposição a um cinema horrível que se fazia na altura cá em Portugal". Mais tarde, haveria de ser o motor para a criação do Centro Português de Cinema (CPC), ligado à Fundação Calouste Gulbenkian, quando se procurou um financiamento mais sólido para esse cinema emergente.

Após algumas experiências na curta-metragem (e o abandono do seu trabalho como arquitecto na Câmara Municipal de Lisboa, para se dedicar inteiramente ao cinema), Macedo estreou-se na longa-metragem com Domingo à Tarde, um dos filmes fundadores do Cinema Novo. Os problemas surgiram à segunda obra, Sete Balas para Selma, que misturava cançonetismo e uma rocambolesca trama policial. João César Monteiro acusou o filme de ser "uma empresa reaccionária carregada de balas que se desfecham traiçoeiramente nas costas dos promotores de uma revolução cinematográfica em Portugal." Segundo Macedo, a traição terá sido intencional: "Eu fazia parte do Cinema Novo, mas noutra panela. Não me interessava o cinema português dos anos 50, mas também não me interessava o outro cinema, aquilo a que eu chamava a escola do bocejo."

Ao contrário dos seus contemporâneos, Macedo não estudou cinema no estrangeiro. Formou-se "no cine-clubismo, vendo filmes, e lendo, devorando, todos os livros da Cinemateca da altura [de Félix Ribeiro]." A Nouvelle Vague, tão importante para os outros cineastas portugueses da sua geração, nunca penetrou no cinema de Macedo, que sempre se sentiu mais próximo do Expressionismo Alemão, de Eisenstein, de D. W. Griffith, de Ingmar Bergman, e da junção de todas essas influências que encontrou em Orson Welles: Macbeth e Otelo fascinaram-no até à loucura, "dois filmes com um preto-e-branco molhado, húmido, de nevoeiro, extraordinário, simultaneamente nórdico e soviético, e de Griffith". No entanto, aquilo que o afastava mais do grupo do Cinema Novo era a admiração pela técnica de contar histórias do cinema americano, que o faz dizer hoje em dia que "os piores realizadores americanos sabem muito bem o que estão a fazer."

António de Macedo andou sempre ao contrário dos seus colegas, fosse na vontade de ir ao encontro do público - recompensada com os êxitos de A Promessa, As Horas de Maria e Os Abismos da Meia-Noite -, fosse num certo desfasamento político-temporal: em pleno PREC, quando toda a gente andava a filmar a revolução, realizou O Princípio da Sabedoria, "um filme de bruxas", como o classificaram; anos antes, em 1970, lançara Nojo aos Cães, uma obra quase premonitória, que antevia a deflagração da esquerda em milhentos partidos no pós-25 de Abril (Macedo atribui esta capacidade de "prever" o futuro ao treino da ficção científica).

Apesar de tudo, os cineastas do Cinema Novo mantiveram-se unidos na luta contra a censura e contra o regime sufocante. "Queríamos fazer um cinema de livre criação artística. Nisto estávamos de acordo", afiança o realizador. Se um número d'O Cinéfilo fora dedicado a atacar violentamente A Promessa, o primeiro filme português seleccionado para a competição de Cannes, depois da remodelação de 1968), Fernando Lopes, editor da revista, liderou, enquanto presidente do CPC, a comitiva que foi defender o filme perante a Censura. "Depois do 25 de Abril, isso desapareceu, aí passaram a ser as divergências pessoais a ter mais importância", admite Macedo.

A primeira pedra

Manuel Mozos, organizador do catálogo sobre António de Macedo editado a propósito da retrospectiva da sua obra na Cinemateca Portuguesa nos passados meses de Junho e Julho, confessa que ponderou se havia de incluir "as críticas e certas entrevistas em que se sentia alguma crispação, alguma violência da parte dos entrevistadores, que atacam bastante [Macedo]". No fim, decidiu-se que o catálogo faria mais sentido como homenagem. Mas "quem ler a entrevista com o António e com os filhos [a realizadora Susana de Sousa Dias e o músico António de Sousa Dias] perceberá que nem tudo foi pacífico, que houve uma certa dificuldade, que houve lutas".

A retrospectiva permitiu uma reavaliação da obra de Macedo - que, descontadas algumas passagens na televisão, estava praticamente invisível há uns anos -, principalmente pelo público mais jovem. "Estou a ter reacções que nunca me passaria pela cabeça vir a ter, sobretudo atendendo às críticas negativíssimas que os meus filmes tiveram durante a sua vida normal", diz o cineasta.

António de Macedo encontra poucas afinidades no cinema português actual - a não ser em algumas curtas-metragens e nos filmes de Edgar Pêra. Também Manuel Mozos diz ter dificuldade em descobrir uma descendência da obra de Macedo: "Não sei até que ponto os realizadores são conhecedores da sua obra. Mesmo do Tiago Guedes e do Frederico Serra [realizadores de Coisa Ruim], apesar de abordarem a temática do fantástico, não é justo dizer-se que há aí uma descendência."

Apesar de encontrar algumas lacunas nos filmes de ficção científica mais especulativa do realizador nos anos 80, casos de Os Abismos da Meia-Noite e Os Emissários de Khalom, João Monteiro, co-director do festival de terror MOTELx, acredita que Macedo "lançou a primeira pedra": "Ele disse: eu vou arriscar e vou-me pôr ali a jeito, vou ser o primeiro. Agora alguém que continue, e um dia isto pode ser uma realidade."

Com o documentário que está a fazer sobre Macedo, Monteiro pretende divulgar a obra de um realizador que considera "mais marginal do que Pedro Costa, mais intelectual do que Manoel de Oliveira, mais iconoclasta do que César Monteiro." Para o programador, é absolutamente inacreditável que esta seja desconhecida, e que se tenham tornado invisíveis histórias como a do escândalo de As Horas de Maria, em 1979, que motivou abaixo-assinados e cartas ao primeiro-ministro de então a pedir a interdição do filme, entre acusações de blasfémia nos jornais católicos - documentos que Macedo guarda religiosamente em casa. "Se eu puder contribuir de alguma forma para um maior interesse nos filmes dele, ficarei muito feliz. Mas já fico feliz de o ter conhecido e privado com ele", diz.

Chá Forte com Limão, de 1993, uma ghost story vitoriana, como António de Macedo a define, acabaria por ser o seu último filme, dando início a uma década de tentativas frustradas para obter subsídios e voltar a realizar. Segundo o próprio, os membros dos júris eram os mesmos críticos que arrasavam os seus filmes. "Até fiz uma queixa ao Provedor de Justiça, denunciando esta situação, apresentando provas. Era uma forma de censura. Tive de desistir, até porque era muito caro concorrer. Ainda mais já sabendo de antemão qual era o resultado." Para não ficar a bater com a cabeça num muro, abriu um novo canal: "Sempre tive muita versatilidade, deixei de fazer cinema, passei logo a escrever livros. Até dizia: eles têm de levar comigo pela cabeça abaixo, se não me apanham de uma maneira, apanham de outra."

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