O grande sono da ficção científica

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Há muito que o género perdeu a sua estante exclusiva nas livrarias. Porquê?

Viajar no tempo, usar um manto de invisibilidade ou dar um passeio pelo centro da Terra são impossibilidades que um dia a Ciência poderá concretizar. Por enquanto, resta sonhar. Ou ler Ficção Científica. Mas será fácil? Basta entrar numa qualquer livraria e perguntar pela secção de livros de Ficção Científica (FC). A resposta mais comum é a de que isso não existe. Há muito que o género perdeu a sua estante exclusiva. Os livros ou estão dispersos, sem pouso fixo, ou sobrevivem no meio da literatura de género Fantástico e de divulgação científica. Longe vai a "Idade de Ouro da FC". Entre os anos 30 e 50, o género recebeu a ampla atenção do público e surgiram autores como Isaac Asimov, Robert A. Heinlein e Arthur C. Clarke, hoje clássicos. Meio século depois, o retrato que os livreiros traçam é unânime: a FC já não está na moda.

A constatação vem de quem vende e de quem publica. Nos anos 80, a Caminho apostou numa colecção dedicada à FC e criou o prémio Editorial Caminho Ficção Científica. O último romance saiu em 2001. A colecção de capa azul morreu.

Na série de FC mais antiga e prestigiada do país - Argonauta (Livros do Brasil) - já não se publica um livro desde 2006. Na década de 60, as tiragens dos livros da Argonauta rondavam os 20 mil exemplares. As últimas edições não ultrapassam as 5 mil unidades. O próximo volume está, no entanto, agendado para Fevereiro.

A colecção "Livros de Bolso - Série Ficção Científica", da Europa-América, está sem novidades desde 1998. A outra chancela do grupo dedicada a este tipo de literatura, a Nébula, está com mais sorte apesar do ritmo de publicação ter diminuído.

O editor da Europa-América, Tito Lyon de Castro, reconhece que o mercado de FC já viveu melhores dias e está, neste momento, "fraco".

"Viajantes no Tempo" é a série da Presença que surgiu em 2002. "Apesar do mercado internacional apostar no género como nova tendência, a colecção da Presença nunca obteve vendas significativas", refere o director de marketing Francisco Pinto Espadinha. No início do ano, a colecção parou. Em 2005 a Saída de Emergência começou a publicar FC apesar do editor Luís Corte Real reconhecer que o género é "comercialmente desinteressante".

"Editamos por carolice. Não existe um retorno financeiro expressivo com a publicação deste tipo de literatura", assegura. Apesar do mercado não estar virado para a FC, existem sempre algumas editoras que decidem remar contra a maré. É o caso das Edições Chimpanzé Intelectual que abriram o catálogo, em 2006, com a antologia "Ficções Científicas e Fantásticas" de nove escritores portugueses. "Começamos pela colectânea 'Ficções Científicas e Fantásticas' por estes serem géneros que em Portugal têm pouca tradição e reduzido espaço de afirmação, apesar de continuarem a dar azo a grandes obras da literatura mundial, assumindo um papel de contracultura importante", justifica o editor Miguel Neto. Este ano, a editora já lançou "A Bondade dos Estranhos", de João Barreiros. É o primeiro volume da primeira trilogia portuguesa de FC. A Gailivro também arriscou e publicou o romance "Ar", de Geoff Ryman.

O passado, não o futuro

Este panorama sombrio não impediu, contudo, que um núcleo português de criadores do género saísse da obscuridade graças à extinta colecção da Caminho. João Barreiros, um dos autores que publicou nessa colecção, acha que o público português não lê FC porque está mais interessado no passado -o sucesso dos romances históricos é disso exemplo -e não consegue visualizar o universo que o rodeia.

"O maior problema deste tipo de literatura deve-se ao desconhecimento do público em relação aos livros que são publicados", opina também Luís Filipe Silva, vencedor do Prémio Ficção Científica Caminho 1991 com "O Futuro à Janela". "Neste momento, as editoras publicam muitas obras de género Fantástico. Os escassos livros de FC que vão saindo acabam por desaparecer rapidamente da exposição nas livrarias." O universo destes dois géneros de literatura não poderia estar mais distante: a Ficção Científica especula sobre situações que um dia a Ciência poderá vir a concretizar; a literatura Fantástica usa o sobrenatural, algo extraordinário que deriva da imaginação e se supõe não existir.

A "iliteracia" dos leitores é, para o ex-realizador e escritor de FC António de Macedo, a causa da fraca adesão a este género: "A FC de agora é mais exigente, ao contrário da que surgiu nos anos 50, e o público tem dificuldade em ler algo que o obrigue a participar activamente na leitura. Mas os leitores pensam que para lerem FC precisam de conhecimentos científicos, o que não é verdade", acrescenta.

Rogério Ribeiro, presidente da Associação Portuguesa do Fantástico nas Artes -Épica, destaca a "má fama" de que a FC goza por estar ligada demasiadas vezes a obras de qualidade inferior. "Na verdade, a FC terá a mesma proporção de más obras do que qualquer temática literária", ressalva. As "más traduções" e a "publicação das obras mais obscuras dos autores mais medíocres" são outras razões que, diz João Barreiros, levam os portugueses a não consumirem esta literatura.

Mais optimista está Luís Miguel Sequeira, presidente da Associação Portuguesa de Ficção Científica e Fantástico -Simetria: "Não creio nada que o público português não se interesse por FC. Está é a consumila sem se aperceber do género que está a ler". O problema não parece estar, para Sequeira, do lado das editoras, porque tem visto boas edições que não recebem a recepção do público. Todos parecem estar de acordo num ponto: a comunicação social não dá atenção ao que se vai publicando dentro do género.

As vendas de FC editada em Portugal não reflectem, contudo, o entusiasmo dos leitores do género. Cristina Alves, bióloga, lê dois ou mais livros do género por mês. Apesar de ter começado por obras traduzidas em português, rapidamente saltou para as edições originais que compra na Net. "Os livros mais recentes nunca estão traduzidos. As compras online colocam os livros nas mãos três dias depois de serem publicados. Para quê esperar 10 anos pela tradução portuguesa?" pergunta João Barreiros.

FC à portuguesa?

A leitura de FC está em crise e o espaço reservado para os escritores portugueses não gozará de melhor saúde. Na colecção Argonauta não encontramos um único autor luso. A Nébula (Europa-América) precisou de editar primeiro 100 livros de autores estrangeiros para dar à estampa "Os Nogmas", da portuguesa Cátia Palha.

Os autores nacionais só encontraram um espaço de acolhimento visível no mundo editorial no final dos anos 80 com a colecção Caminho Ficção Científica. Excluindo este período de vitalidade, a publicação deste tipo de narrativas escritas por portugueses sempre viveu na clandestinidade, nota a investigadora e docente Teresa Sousa de Almeida, na antologia Fronteiras, publicada pela Simetria em 1998: "Em Portugal a FC é completamente ignorada pela instituição literária nacional, pela escola e, salvo honrosas excepções, pela crítica. Tem sido relegada para edições de autor, colecções especializadas, fanzines de duração efémera e algumas antologias que fizeram história. Face a esse esquecimento, responde na mesma moeda".

Mesmo não sendo muito visível, António Macedo acredita numa FC portuguesa. Mais céptico é Luís Filipe Silva que reconhece a existência de uma FC escrita por portugueses mas prefere não reivindicar o estatuto de Ficção Científica Portuguesa por serem poucos os escritores lusos e não se inspirarem em elementos de identidade nacional. "Os romances inspiram-se em tradições não portuguesas e por isso caem num vazio conceptual no nosso meio literário, o que não abona em favor deles".

"Os autores portugueses de FC são herdeiros espirituais de Eça de Queirós ou de Júlio Dinis" acrescenta Luís Miguel Sequeira. A ironia, a paródia, a preocupação com a realidade portuguesa e uma ligeira tendência para ficções de natureza política são as características da FC escrita por autores portugueses que a investigadora Teresa Sousa de Almeida destaca.

Existem discussões e especulações sobre a morte da FC. Na Internet, os argumentos são muitos, desde o rápido avanço da ciência que a FC não acompanha, até à constatação de que já vivemos num cenário de FC, o que torna o género obsoleto ou redundante.

"Quando existe algo que se torna realidade, surge sempre outra coisa que é preciso inventar", diz António de Macedo que não acredita no fim deste tipo de literatura. Menos certezas têm João Barreiros: "Não sei se a FC está a morrer devido ao desinteresse crescente pelo futuro, mas se assim é, estamos todos em perigo. Daqui a 200 anos quem é que se lembrará do 'Memorial do Convento', de José Saramago? Mas a 'Máquina do Tempo' do Wells, o 'Frankenstein' da Shelly, 'O Deus das Moscas' de Golding, o 'Admirável Mundo Novo' de Aldous Huxley ou a 'Laranja Mecânica' de Burgess continuarão a ser lidos", vaticina. O que a FC precisa é, segundo Luís Filipe Silva, de se reinventar, "Mais tarde ou mais cedo, a FC acabará por conquistar um público mais expressivo em Portugal", prevê Francisco Espadinha. Um núcleo de escritores e entusiastas no nosso país está pronto para jogar. Mas, para isso, precisam que a literatura de FC acorde do longo sono em que mergulhou para viajar à velocidade da luz pela mente dos leitores. Em direcção a mundos desconhecidos.

A jornada pode já começar com algumas das próximas publicações do género em Portugal: "Brasil" de Ian McDonald chegou às livrarias, com o selo da Gailivro; "A Máquina do Tempo Acidental", de Joe Haldeman, será publicado em Dezembro na Nébula; "The Memory Cathedral" de Jack Dann está agendado para Fevereiro de 2009, pela Saída de Emergência.

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