O futuro de Portugal é o PENT

1. O turista aterra em Portugal sem saber da tragédia grega, nunca ouviu o nome Espírito Santo. Aterra feliz, porque acaba de ler no jornal que Portugal ganhou 16 (dezasseis) óscares europeus de turismo. De Lisboa à Madeira, do Porto ao Algarve, incluindo a TAP e os cruzeiros da Douro Azul, não há melhor destino para um turista em toda a Europa. Eis tudo o que um turista precisa: que o destino confirme o que ele espera.

2. Digamos que o turista aterrou em Lisboa, apanhou um táxi para um bairro histórico, saiu na rua principal e subiu três andares. Abre a porta: está em minha casa. Não é hipotético, é mesmo a minha casa, que como alguns milhares de portugueses estou a alugar a turistas para poder pagar ao banco aquilo que devo. Por acaso, por uma nesga, esse banco não é o Espírito Santo.

3. O turista são sempre dois, três, quatro, cinco, até seis (no caso da minha casa), visto que em geral o turista não se anima sozinho, exactamente da mesma forma que os frequentadores de cafés populares não se animam sem música, e os frequentadores de restaurantes populares não se animam sem televisão, no caso da terra alentejana onde moro diria mesmo que é impossível achar um restaurante sem televisão. O lombo é excelente, as migas são excelentes, o vinho é excelente, mas se a televisão está desligada as pessoas pedem logo para ligar, explicam os meus conterrâneos, embora onde moro não haja turistas, perdoem a digressão. Dizia eu que o turista nunca é um, digamos que são cinco. Cinco turistas radiantes, porque além da vista, além da casa, toda a rua, agora, é deles.

4. No começo deste milénio, quando havia empregos, empréstimos e as pessoas compravam casas, comprei a minha casa pelo dobro do que agora, 15 anos depois, já me deram por ela: eu e a torcida do Benfica. A rua, então, era uma pasmaceira. Todos os paquistaneses que a rua vira estavam na televisão, eram terroristas, pelo menos muçulmanos. Agora, os turistas saem da minha porta e entram na mercearia do paquistanês de Lahore, onde compram mortalhas, garrafas de água ou pêssegos, tudo mais caro do que no supermercado, mas, claro, nada se compara a podermos conversar sobre Lahore, ou deixarmos um molho de folhas de videira trazidas do nosso quintal do Alentejo ao cuidado do paquistanês de Lahore, porque um amigo quer cozinhar dolmatakhia, aqueles rolinhos gregos, e há-de passar a buscar. Ainda não passou, à hora de fecho desta edição estava na China, em 15 anos o mundo ficou uma casca de noz. E nós todos nela, da China à minha rua, prestes a afundar.

5. Então o turista é aquele travão do apocalipse. Cá está ele, a sair da minha porta. Tanto à esquerda como à direita tem bares, e, à esquerda e à direita dos bares, mais bares. Como o passeio é estreito e não dá para esplanadas, os bares estendem esteiras e os clientes sentam-se de rabo na calçada. Como as ruas são estreitas, há tuk-tuks como em Lahore, dezenas de tuk-tuks, com malas, sem malas. Tudo é gourmet, tudo são tapas, ou retro, ou vintage. Até uma barbearia vintage ao fundo da rua, eu não queria acreditar. Calhou que acabava de fazer uma pesquisa sobre lâminas dos anos 1940 para uma das minhas personagens, e de repente a lâmina da minha personagem estava na montra da barbearia da minha rua, à espera de algum taiwanês cool, daqueles dos filmes, que agora comem sardinhas no pátio vizinho.

6. O Inverno fustigara a casa, eufemismo para dizer que choveu lá dentro, portanto tive de fazer obras, portanto ao fim de quatro anos voltei a dormir lá algumas noites, para antes das obras deslocar o peso de milhares de livros das paredes para o centro, e depois das obras voltar a deslocá-los para as paredes. De cada vez que saía à rua alguém falava comigo numa língua diferente. De cada vez que eu entrava e saía do prédio tinha de furar por entre a multidão. E à noite era aquela alegria da cantoria até às cinco da manhã, e do cheiro a cerveja velha pela manhã. Ah, o cheiro a cerveja velha pela manhã.

7. Melhor que napalm, é certo, e com certeza melhor que a Herdade da Comporta neste Verão de 2014. Venha daí um Eurípedes que organize as 300 e tal personagens da tragédia, para ficarmos pela família. E os pequenos accionistas? E os trabalhadores? A que se há-de agarrar o português? Em quem confiar? É aqui que entra o PENT, Plano Estratégico Nacional do Turismo.

8. Descobri o PENT há um ano, ao fazer uns textos para um fanzine que cerca de 13 pessoas leram, portanto roubo de mim própria o título desta crónica, que era também o título de um desses textos: O futuro de Portugal é o PENT. Estou a ser irónica mas também objectiva, porque o futuro de Portugal ser o PENT é tão artificial e tão real como aquela fotografia do Martin Parr na Acrópole. Tive a minha cota de Acrópoles e Coliseus, não vou pasmar com a fila para as sardinhas.     

Foto
Jaris Savoglou/Demotix/Corbis

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