O desperdício de António Guerreiro

1. Recentemente, defendi aqui apoios à criação literária por parte do Estado e instituições com orçamentos (Portugal é um país de escritores ricos). António Guerreiro (A.G.) fez uma crónica no Ípsilon a contestar o que escrevi (A dura lei da ‘visibilidade). Estranho o alvo e a direcção de A.G., num tempo em que a criação lida com tantas dificuldades. Mas se o seu texto não contivesse uma passagem falsa eu estaria agora a escrever sobre o Magrebe, ou a fazer o que faço sete dias por semana: trabalhar num livro. Isto, infelizmente à custa de tempo para quem gosto, mas felizmente à custa da visibilidade em que A.G. me situa. Há muitos anos que declino coisas com visibilidade quando a prioridade é escrever, incluindo convites remunerados, como aconteceu nestes meses de isolamento, em que tudo o que aceitei foi de zero ou escassa visibilidade, apenas por amizade ou convicção política (aulas/cursos, pequenos lançamentos, um encontro no Magrebe). E enquanto não acabar este livro, assim será. De resto, agora ou depois, A.G. não me achará a fazer malabarismos para ficar visível, tomara eu um para ficar invisível boa parte do tempo. Mas ainda que o meu estilo fosse de grande visibilidade, isso não poria em causa nada do que escrevi sobre apoios à criação literária, nem o direito a escrevê-lo.

2. Ao defender esses apoios, expliquei que havia dois motivos para o fazer agora: Portugal voltou a ter um Ministério da Cultura; e nunca como antes câmaras, bibliotecas e outras instituições promoveram tantos encontros em que escritores são envolvidos de graça. Ou seja, hoje os escritores portugueses enfrentam não apenas a falta de dinheiro (bolsas, residências, participações remuneradas) como de tempo para escrever. Foi isto que quis questionar, não personalizando, de forma a poder ser relevante para instituições e criadores em geral, com propostas concretas, comuns em qualquer democracia de cultura forte. Bizarro para um alemão, inglês ou francês será não ser pago por dar o seu trabalho/tempo. Pior, alguém dizer-lhe, como A.G., que na actual “condição do trabalho intelectual na época neoliberal” não é possível ter o melhor de dois mundos, visibilidade e ainda ser pago. Esta lógica de A.G. lembra-me a do ex-secretário de estado Jorge Barreto Xavier durante a entrega do prémio da APE, quando, confundindo escandalosamente Estado e Governo, declarou que eu não devia ter criticado o Governo e Cavaco Silva no discurso da cerimónia, mas estar grata ao Governo por ser um dos financiadores do prémio. É a lógica de uma cultura de não-liberdade: está a receber um prémio, portanto não proteste. A versão de A.G. é: tem visibilidade, já está a lucrar, portanto não proteste. A.G. leva o cinismo do diagnóstico a este ponto: “Se não pudessem recorrer a um enorme volume de trabalho gratuito ou quase gratuito — sempre em nome de uma promessa, da miragem do futuro —, grande parte das universidades, dos jornais e das actividades editoriais seriam obrigados a fechar as portas.” O que é suposto extrair daqui? Que este é o sistema, então quem protesta é ingénuo, ou, pior, não tem o direito de o fazer porque aparece em público? Há nisso uma imposição claustrofóbica, como se estivéssemos condenados a uma condição. Não estamos, e eu não me reconheço nessa condição: é possível colher alternativas e soluções de vários países, onde os criadores têm visibilidade e apoios. Ao fazer um diagnóstico negro e, ao mesmo tempo, bloquear a saída, A.G. apenas valida a lógica de exploração, subjugação e falta de liberdade.

3. Chego então à tal passagem: “E de certeza que o presente protesto da escritora A.L.C. poderia ter sido formulado no tempo e no espaço da jornalista A.L.C. Mas não foi, e seria uma outra conversa perceber os privilégios imaginários da condição de escritor.” É uma passagem torcida (ou apenas mal escrita) e, do que dela entendo, não corresponde à verdade. Como jornalista do PÚBLICO, muitos anos antes de publicar livros, fiz vários artigos sobre apoio à criação literária, ouvindo diferentes opiniões, e, em espaços de opinião, defendi esse apoio, incluindo trocas acesas com Vasco Graça Moura. A minha visão sobre isso é inequívoca há muito (em anos recentes, já só como cronista, escrevi mais de um texto sobre trabalho/tempo não-pago, o mais partilhado gerou até um movimento).

4. Mas esta passagem de A.G. é problemática para além do elemento falso. E aí entramos no que se tem tornado cada vez mais problemático nas crónicas de A.G. Ao afirmar o que afirma, A.G. parece estar a dizer 1) que como jornalista não me pronunciei 2) que, por isso, não tenho o direito de me pronunciar como escritora. Ou seja, não apenas falta à verdade em 1) como em 2) insinua uma falta de ética. E é isto que A.G. faz cada vez mais: rebaixar com desdém os objectos das suas crónicas. Lamento que desperdice toda uma bagagem de leitura e contundência num cinismo sistemático, que parece sempre a mesma crónica, sempre sem saída.

5. Algumas notas ainda sobre a tal passagem. Não deixei de ser jornalista por ter saído do PÚBLICO. Escrevo estas crónicas sendo tudo o que sou, como qualquer cronista que seja professor e ensaísta ou outra coisa. Sair da redacção (no fim de 2012) foi a opção de viver com menos dinheiro e ter mais tempo para escrever, mas serei jornalista sempre, mesmo que não esteja a fazer reportagens (em 2015, só uma, para este jornal). E qualquer jornalista que se torne escritor tem o direito de defender apoios à criação, quer tenha defendido isso antes ou não. Mais: claro que ao começar a publicar livros, e a receber convites de graça para aqui e para ali, o contexto do que estamos a falar se clarifica. É só natural que um escritor que é ou foi jornalista fale do que não falou antes, porque a realidade de 2016 é diferente de há dez ou vinte anos, e porque a conhece como antes não podia.

6. Acredito no que faço, e que nos cabe honrar o que fazemos. É uma luta diária, antes de mais contra a facilidade, e se cada um não acreditar não sei por que outros hão-de acreditar. No caso das crónicas, será também, muitas vezes, uma forma de intervenção no colectivo. Não escrevemos para ter muitos leitores, mas acredito em escrever para (e talvez por) um, pelo menos. Repressão em Angola, venda de armas à Arábia Saudita, ocupação israelita da Palestina, machismo, exploração, abusos, tudo é parte do mesmo, pensar as implicações políticas de ter espaço num jornal.

7. Quando comecei a publicar livros, decidi que contribuiria para os divulgar, por convicção política e um pouco contra-feitio. Isso passa por entrevistas e contacto com leitores, quando não estou a escrever e faz sentido. Mas reservo o direito de desaparecer, tal como defendo o direito de qualquer escritor ao silêncio total, ou a estar disponível para muitos convites. Nenhuma das opções (nada, pouco, muito) é moralmente mais válida, ou faz com que o escritor perca direito a ser pago pelo tempo/trabalho. Cada um tem de estar livre para decidir, sem que lhe vigiem o tempo ou a visibilidade.

8. Admito ter sido instrumental na crónica de A.G., que além de mim ele quisesse visar gente bem mais visível, na sua negra visão do mundo. A minha visão do mundo não é mais optimista, mas é diferente. Tenho visto no concreto, de Gaza às favelas do Brasil, Nietzsche ter razão, agora, aqui: o que não mata dá força. Em tempos duros, fácil ser cínico. O cinismo iliba de ir além, fica na derrota. O combate é o que está um passo à frente: não uma condição, mas uma escolha diária. Como, no meio do mais duro, a alegria.

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