O bufão que morreu de pé, "a tocar ukulelé"

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Malcolm Lowry publicou em vida dois livros. Um deles é uma obra-prima do século XX, "Debaixo do Vulcão" parece "cem foguetes a rebentarem ao mesmo tempo", como definiu o próprio. Evocamos o génio e damos voz aos seus leitores indefectíveis.

Ele haveria de ter apreciado a escolha das palavras que constam da sua certidão de óbito: "Death by misadventure" ("morte por desventura"), escreveu o médico que o autopsiou naquele fim de Junho de 1957. A "desventura" era a tradução literária, por assim dizer, disto: um cocktail de barbitúricos (50 comprimidos para dormir, contam biógrafos, pertencentes à sua segunda mulher, Margerie Bonner) e álcool.

Malcolm Lowry tinha apenas 47 anos e dois livros publicados, "Ultramarina" e "Debaixo do Vulcão". Tudo o resto (romances, poemas e novelística) pertence ao rol de títulos que a História da Literatura carimba como livros póstumos.

No dia em que foi encontrado morto, a 27 de Junho, teve uma violenta discussão com Margerie. Depois, ouviu "A Sagração da Primavera", de Stravinsky (o volume no máximo, as paredes a estremecerem e ele agarrado a uma ou duas garrafas e a um frasco de comprimidos). É quase inevitável imaginá-lo agonizando sob o efeito desta mistura e não surgir a imagem do índio que, no "Vulcão", jaz moribundo na berma de uma estrada poeirenta.

Lowry não foi enterrado em Birkenhead (Cheschire), onde nasceu a 28 de Julho de 1909, mas em Ripe, perto de Brighton, num túmulo que não ostenta o epitáfio que já havia escrito para a sua lápide: "Aqui jaz Malcolm Lowry/ Perdido e achado em Bowery./ Na prosa, se às vezes floria/ Outras até deprimia./ Passava a noite a viver,/ O dia inteiro a beber,/ E ao morrer estava de pé/ A tocar ukulelé" (tradução de Aníbal Fernandes). No seu lúcido poema-epitáfio, ele não poderia ter sido mais confessional, descontruíndo a sombra negra que muitos insistiam em ver nas suas obras, na sua vida e nele próprio. "Parvoíces", disse um dia o poeta norte-americano Conrad Aiken, seu mentor e amigo de longa data. "Toda a sua vida foi uma brincadeira pegada: nunca houve um bufão shakespeareano tão jovial", afirmou, já depois da morte de Lowry, cansado que estava de ler artigos sobre o alegado sofrimento incomensurável do seu amigo.

A verdade é que Lowry também contribuiu para o mundo de enigmas e espantos que cresceram em seu torno. Colocando de lado o álcool (a iniciação fez-se durante uma viagem, a bordo do Pyrrhus, e o mergulho do então jovem Lowry na bebida já não teve retorno) há histórias sobre a sua infância que parecem uma descida aos infernos. Ele próprio contou que foi torturado e sofreu várias tentativas de assassinato quando era criança as amas eram os seus carrascos. Uma vergastou-lhe os órgãos genitais, outra tentou afogá-lo num barril de água (foi salvo pelo jardineiro), outra ainda obrigou-o a conduzir o seu carrinho junto a um precipício e (nunca desistindo) uma outra ama-carrasco quis asfixiá-lo com uma manta. Uff... Haveria aqui matéria de sobra para (psic)analisar (agora com os traumas de infância no horizonte) alguns actos de Lowry. Isto se não soubéssemos que ele próprio repetia vezes sem conta para não o levarem demasiado a sério.

11 anos, 4 versões e muito mescal

Quando Lowry, acompanhado por Aiken, passou uma breve estadia em Lisboa, em 1933, faltavam apenas três anos para ele aportar num outro país, mais exuberante, festivo e trágico, capaz de inebriar um inglês devotado à beleza: o México.

Ele e Jan Gabriel, a americana que conhecera no Sul de Espanha e com quem casara em Paris, chegam a Acapulco no Dia dos Mortos de 1936. Os rituais de 1 e 2 de Novembro deixam o escritor extasiado e logo o fascinam os ambientes carregados de fumo e de odor adocicado das cantinas. Não tardou para experimentar a tequilha e o mescal, quando já estava instalado numa casa alugada em Cuernavaca, cidade com pouco mais de oito mil habitantes.

Rapidamente o México ("o lugar ideal para situar o combate de um ser humano entre os poderes das trevas e da luz", definiu) irrompe na sua imaginação e a ideia de escrever um romance cuja acção teria lugar naquele país ganha alento a cada dia que passa as pessoas que vai conhecendo reservam agora um espaço na história que ele esboça mentalmente. Começa a escrever o "Vulcão" ainda nesse ano, o primeiro de longos anos de horror. Amigos seus combatem na Guerra Civil espanhola, o nazismo eclode e o mundo está prestes a ser engolido pela guerra.

Lowry sabe que "Debaixo do Vulcão" pode ser a sua criação mais ambiciosa e, por isso, aposta tudo nela e defende-a com unhas e dentes (resistirá, uma década depois, às investidas dos editores que lhe pedem para fazer alterações na narrativa).

A crença vale-lhe o divórcio de Jan, que o abandona no México em meados de 1937. A crença e as bebedeiras, claro. Por vezes, e perante a ira de Jan, justificava a ida às cantinas com propósitos literários. Quando ela já dormia, escapulia-se para o jardim da casa, onde escrevia até amanhecer, acompanhado por uma garrafa que ali escondia (acto que também atribuiu ao protagonista do "Vulcão", o Cônsul Geoffrey Firmin, uma das personagens mais marcantes da literatura do século XX).

Sozinho, Lowry viaja pelo país e escreve, reescreve, corta e altera vício que manteve até ao fim da vida, pelo que se entende por que é que a maior parte da sua bibliografia é póstuma. Faltavam onze anos até à edição do livro e pelo meio Lowry escreveu quatro versões perdeu uma num incêndio e outra durante uma monumental bebedeira.

Em 1938, Lowry viaja para Los Angeles com o manuscrito na bagagem. Até 1947 o tempo corre veloz: vive em Vancouver; casa-se com Margerie Bonner; muda-se para Dollarton; envia a terceira versão do livro para o seu agente, Harold Matson; não se resigna quando o "Vulcão" é rejeitado por 12 editoras; recomeça a trabalhar numa quarta versão e envia-a de novo para Matson; e regressa ao México no último ano da II Guerra Mundial. A obsessão pelo livro transparece até nos poemas que escreve ao longo desses anos. "There was an old Cônsul called Firmin/Who alas was infested with vermin/But for this man obscene/Was prepared a ravine/To spend all the rest of his term in", poema datado de 1942.

Em Junho de 1945 (a ceifa da guerra ainda não terminara, faltando a estocada final das bombas atómicas detonadas sobre o Japão), Lowry dá por concluído o livro. Não admite mais uma alteração, diz a Matson. E fica por Cuernavaca até à Primavera de 1946, apesar de escrever aos amigos que julga estar a ser perseguido por gente que vê nele um espião.

Numa carta enviada a Jonathan Cape, editor londrino, confessa que a sua intenção quando iniciou a escrita do "Vulcão" era conceber uma trilogia, intitulada "The Voyage that never ends": começava com o "Vulcão", prosseguia com "Lunar Caustic" e terminava com "In Ballast to the white sea" (perdido para sempre num incêndio).

A resposta de Cape é o anúncio da futura edição do livro. No mesmo dia, Lowry recebe também uma carta da Reynal & Hitchcock, de Nova Iorque, com a mesma notícia. Abandona o México e, depois de uma passagem por Dollarton, viaja para Nova Iorque para o lançamento do livro, em 1947.

A batalha estava ganha e Lowry consegue finalmente ver publicado o livro que quis transformar numa "obra pioneira" e que acabou por ser "a autêntica história de um bêbado".

"O danado deste livro parece cem foguetes a rebentarem ao mesmo tempo", disse.

Mais de duas décadas volvidas sobre a morte de Lowry, e com o "Vulcão" já sedimentado num lugar destacadíssimo da história da literatura do século passado, John Houston realizou a versão cinematográfica do livro. E pediu ao escritor cubano Guillermo Cabrera Infante para fazer a adaptação de um livro que em 12 capítulos desfia um sem número de parábolas de todos os tempos. "Debaixo do Vulcão" chegou aos ecrãs em 1984: Albert Finney interpretou o Cônsul (consta que a primeira escolha terá sido Richard Burton, que recusou) e Jacqueline Bisset representou o papel de Yvonne Firmin. Houston estava já no final da sua carreira, mas não foi por isso que o público recebeu o filme com alguma indiferença. Para os leitores de Lowry, esta é uma história que apenas vive no papel.

Bibliografia consultada: "Pursued by Furies A Life of Malcol Lowry", de Gordon Bowker (St. Martin's Press) "Selected Letters of Malcolm Lowry", de Harvey Breit e Margerie Bonner Lowry (Lippincott Company) "The Collected Poetry of Malcolm Lowry", de Kathleen Scherf (UBC Press) "Vidas Breves", de Javier Marías (Quetzal) "Lunar Caustic", de Malcolm Lowry (introdução e tradução de Aníbal Fernandes)

 

 

2007 podia ser o ano Lowry

Em Portugal somente a Relógio d'Água e a Assírio & Alvim se lembraram das efemérides. A celebração é dupla: passam 50 anos sobre a morte do escritor e 60 sobre a publicação da obraprima "Debaixo do Vulcão". Em Portugal, a primeira e única tradução surgiu em 1961, com a chancela da Livros do Brasil. A Relógio d'Água decidiu agora editar o livro, mas resgatou a mesma tradução, assinada por Virgínia Motta. Apenas reviu a tradução e acrescentou o prefácio que Lowry escreveu para a edição francesa da obra.

Numa iniciativa que reúne pela primeira vez em livro poemas do autor, a Assírio & Alvim vai lançar, ainda este mês, "As cantinas e outros poemas", selecção e tradução do poeta José Agostinho Baptista.

A tradução da poesia de Lowry não é algo inédito - Herberto Helder e Carlos de Oliveira foram, porventura, os primeiros autores a dar a conhecer os poemas do escritor inglês, publicando-os em revistas já desaparecidas. Lowry não tem uma bibliografi a extensa e as traduções portuguesas não são escassas, mas sim antigas e difíceis de encontrar (com a excepção do "Vulcão" e de "Lunar Caustic"). Falamos de "Ultramarina" (o primeiro livro que Lowry publicou, tinha 24 anos), "Através do Canal do Panamá" (uma das oito novelas incluídas em "Hear us O Lord from Heaven thy Dwelling Place"), "Escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo" e "O barco de Outubro para Gabriola".

 

"Rogério Casanova" Autor do blogue Pastoral Portuguesa

A experiência de ler o "Vulcão" (17 anos) representou uma turbulenta dilatação das possibilidades da literatura: a ideia de que um livro podia ser um enorme tecido alusivo, remetendo para precedentes, para a mitologia, para o cinema, referenciando tanto a high como a low art; e a revelação de que era possível escrever 400 lúcidas páginas sobre uma broega interminável, em que pouca coisa acontece fora da consciência retalhada do protagonista. Reli-o há meses, pela experiência de ler o original. A tradução da Livros do Brasil adquiriu uma reputação de culto como uma das piores que se fez em Portugal; a incompetência é mais moral do que técnica - a sintaxe é intransigentemente corrigida e o esporádico palavrão é domesticado. É quase surpreendente que o Cônsul não tenha sido sujeito a uma compulsória desintoxicação editorial. Ser alcoólico é um emprego a tempo inteiro. É evidente que Lowry teria escrito mais livros caso preferisse leite com chocolate a todo e qualquer estupefaciente detectado pelo seu radar.

O resto é mistificação. A falácia do artista torturado já há muito que devia ter sido desfalaciada: remete apenas para a clássica confusão entre correlação e causalidade. A biografi a tóxica de Lowry pode ter-lhe fornecido o fio condutor para a narrativa, mas o trabalho em si foi feito nos seus tristemente raros intervalos de sobriedade.

 

Henrique Fialho Escritor e autor do blogue Insónias

Cheguei a Lowry através de "O Anti-Édipo", de Deleuze e Guattari, que li antes de 97. Adquiri o livro numa feira de velharias. Senti que tinha lido um grande livro, um dos melhores que alguma vez li. Coloca-nos frente a frente com questões essenciais e fá-lo de uma forma crua, sem rodeios, oferecendo-nos um retrato cruel da vida.

Algumas dessas questões são a impotência dos homens na inversão do curso da História, a indiferença humana perante o sofrimento alheio, a condenação a uma inexorável solidão, uma desconfi ança limite acerca da bondade dos homens, a tal presença da morte em tudo, a ideia de que o passado não tem remedeio. É um livro que nos diz não valer a pena sonhar. Conta-se que a ideia para o romance terá surgido quando Lowry avistou um índio moribundo a ser roubado na berma de uma estrada. Um moribundo a ser roubado é uma imagem sufi cientemente forte para inspirar um romance ou para nos colar ao balcão de um bar. É a imagem da decadência humana no seu aspecto mais abjecto e indecente. Isto sem censuras morais. A questão é que quem rouba está a roubar um homem em agonia, está a roubar a morte. A imagem leva-nos a questionar sobre o quão decadente pode ser o ser humano. Podemos responder a isso de várias formas, bebendo é uma delas.

 

João Macdonald Jornalista

A primeira vez que o li tinha 22 anos e obviamente fiquei longe de compreendê-lo. Nunca li a tradução portuguesa.

Ando sempre com a mesma, a da Penguin, anotada, sublinhada, estudada. Dois ou três anos depois voltei ao livro. Mais informado, mais esclarecido. Mas não muito mais. O "Vulcão" lê-se continuamente, como qualquer clássico. Lê-se e entende-se profundamente devagar. Há cerca de um ano reli-o de uma ponta a outra. Desta vez, fi quei ainda mais fi xado na personagem do Cônsul como alguém que não pode fazer nada acerca de nada. Fui introduzido a Lowry e ao "Vulcão" por um amigo 30 anos mais velho. Explicou-me o Lowry bebendo, li bebendo, continuámos a beber para falar do autor. Ironias à parte, acho mesmo que não é possível perceber o livro e o escritor sem ter uma razoável experiência com a bebida - e não me refi ro ao lado lúdico. Já muitos disseram: a metáfora do Cônsul continuamente bêbado representa o mundo prestes a entrar na insana bebedeira da II Guerra Mundial. O livro pode ser entendido de várias maneiras, a começar pela sabida metáfora central do bom samaritano (o índio à beira da estrada, o Cônsul individualista). Eu prefi ro ver tudo como um retrato quase críptico do fi nal de uma época liberal (mesmo com as referências à queda da República espanhola), a caminho do falhanço universal - a guerra.

 

Liliana Fernandes Jornalista

Li-o aos 15, 16 anos por proposta de um professor de Português. Lowry tem uma capacidade que poucos escritores têm: as personagens saltam das páginas para a nossa imaginação. Durante algum tempo, tive a sensação de que o Cônsul estava sempre na minha cabeça.

Em certos momentos senti-me como ele, angustiada, embriagada. Não consigo dissociar o livro da palavra calvário. Vou agora relê-lo para saber se sinto o mesmo.

O que alcancei de imediato é que talvez se tratasse de um livro autobiográfi co e isso angustiou-me ainda mais. À distância percebi que o livro retrata também um período conturbado da História e refl ecte a luta da Humanidade contra a solidão. Transmite uma imagem muito latejante da vida. E é um romance muito lúcido.

 

João Villalobos Jornalista, escritor e autor do blogue Debaixo do Vulcão

Não me recordo quando o li pela primeira vez. Teria certamente mais de 18 anos, menos de 21. Acho que não percebi nada, para ser franco. Já quando o li a segunda vez (ou seria a terceira?) tive a mesma impressão que hoje tenho. A de estar na presença de um livro único.

Um livro de um escritor para escritores e leitores que amam a Literatura.

Do ponto de vista autobiográfi co será também "uma autêntica história de um bêbado", como escreveu Lowry. Mas julgo-a redutora no sentido da falsa e protectora modéstia.

O que encontrei? Um sonho de uma mulher que espera no homem que ama a força que ela própria não tem e um homem incapaz de viver a partilha desse sonho. Uma frase inscrita numa fachada onde se lê: No se puede vivir sin amar. E um escorpião, como eu o sou, como o Cônsul, essa personagem sem nome próprio o é, com ou sem astrologias: "É um bicho esquisito, o escorpião - Não quer saber da cura nem do sacristão. É na verdade um lindo animal. Deixá-lo ser. De qualquer maneira, o que ele faz é morder-se a si próprio até morrer".

Lowry é, defi nitivamente, alguém que o Tempo não fez e não fará esquecer. E essa, literariamente, é a maior prova de Amor. E de génio literário.

 

Ernesto Reaño Carranza Psicólogo, linguista e autor do blogue El doctor responde o...te come (Peru)

Descobri Lowry através da sua poesia. Os poemas fascinaram-se de tal forma que procurei ler todos os seus livros. Li o "Vulcão" em 97, durante o primeiro ano da faculdade, e a prosa pareceu-me estranha e complicada. Gradualmente fui compreendendo que essa prosa barroca e singular não era senão o retrato de um mundo complexo como é o México e as suas infi nitas matizes e como é, no seu conjunto, a América Latina. Digamos que o "Vulcão" é a outra face do "realismo mágico". É um mundo festivo e por vezes sombrio, uma tragédia que se vive todos os dias, enredada nos mitos, nas tradições e nas alucinações provocadas pelo mescal.

Reli-o há cerca de três anos. É um livro a que se regressa com alguma cautela, como que não querendo despertar o vulcão, aquele que habita a cidade e o interior de todos nós. É um romance apaixonante e embriagante: na verdade, é a descrição lúcida de uma bebedeira que decorre perante os olhos do Cônsul e também dos leitores. é a bebedeira perpétua de um continente submerso nas tragédias das quais extrai razões para pensar sobre si próprio e sonhar.

 

Rui Manuel Amaral Director da revista "Águas-furtadas" e autor do blogue Dias Felizes

Passou bastante tempo desde a primeira vez que li o Lowry, tinha 18 ou 19 anos. Na altura, impressionou-me muito. Eu devorava os livros do Herberto Hélder e o "Vulcão" pareceu-me fazer parte do mesmo universo literário. Entretanto, li muitos outros livros e cresci enquanto leitor. As afi nidades entre ambos [Helder e Lowry] já não me parecem tão evidentes. Mas continuo a acreditar que essencialmente há algo que os aproxima: ambos fazem uma espécie de viagem ao destino do homem através do próprio corpo. Um corpo que caminha lenta e inexoravelmente para a morte. Há algo de muito violento na escrita de ambos.

Se escavarmos o livro, bem no fundo não vamos encontrar mais do que a simples história de um bêbado.

É um facto. Mas tudo o que está à volta e por cima desse miolo é que faz toda a diferença. Ou seja, o estilo do Lowry, a maneira peculiar como ele conta a história é que faz do livro uma obra diferente. Esse é o aspecto que mais me interessa em Lowry: a sua capacidade de inovar, de mandar às urtigas os clichés literários, de escrever sem rede, de contar as suas histórias pela sua voz e de uma maneira realmente original.

José Agostinho Baptista Poeta e tradutor

Em mais de 30 anos do meu amor pelo México tem havido muitas coisas e muitas fi guras. Uma delas é Malcolm Lowry e o seu "Debaixo do Vulcão". Lembrome perfeitamente da surpresa, do fascínio e da grande perturbação quando o li pela primeira vez. E voltei a lê-lo mais duas ou três vezes. O impacto que teve em mim foi tão grande e duradouro que há alguns anos publiquei um livro sobre o México a que dei o título "Debaixo do Azul Sobre o Vulcão", uma clara alusão a Lowry.

Li-o há cerca de 30 anos e regressei a ele porque senti um forte apelo para reencontrar-me de novo com aquela fi gura perturbadora e de uma grande riqueza humana que é o Cônsul. Não se trata apenas da história de um bêbado. Mas da condição humana explorada na sua profundidade, com violência interior, dúvidas e desajustes. É um livro intemporal que foge aos cânones do romance clássico (até aqui se nota o génio do autor). É o livro de uma vida e foi certamente a maior aposta de Lowry.

Ana Cristina Leonardo Jornalista e crítica literária

Li pela primeira vez aos 24 ou 25 anos, por recomendação do António Cabrita. Dentro da ideia de que o romance deixou de ser uma obra total, mas antes fragmentária, é um romance clássico. Fala de tudo (amor, política, gente desesperada).

O desespero do Cônsul é o desespero de uma época, mas é também a história do mundo. E pode ser lido de forma alegórica - a assunção do nazismo na Europa, a condição existencialista, um retrato do México (que é também protagonista do livro).

Há autores que são muito desconfortáveis. Quem conseguir ler este livro sem fi car mal disposto tem qualquer coisa de grave. É um murro no estômago.

E separa as águas, porque as pessoas que o lêem identifi cam-se umas com as outras. Li-o duas vezes.

Muitas vezes volto a ele para ler alguns excertos.

A minha leitura do Lowry é mais emocional. Quando se lê muito surge uma altura em que já não se lê com inocência. Lowry falou-me sempre ao coração - leio-o sempre num estado de inocência.

Depoimentos editados por Maria José Oliveira

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