Julião Sarmento em versão concentrada

A exposição No Fio da Respiração, que esta sexta-feira se inaugura em Matosinhos, inclui duas obras de 1966 que nunca antes tinham sido mostradas em público.

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Veneno (6), escultura de 1998 que pode ser vista em Matosinhos Paulo Pimenta

Antecipando a instalação de uma escultura pública de Julião Sarmento dedicada a Passos Manuel, que a Câmara de Matosinhos encomendou e prevê descerrar depois do Verão na marginal da cidade, inaugura-se esta sexta-feira à noite na Galeria Municipal do concelho a exposição No Fio da Respiração, comissariada por Miguel von Hafe Pérez, que mostra 25 obras do artista, duas das quais nunca antes vistas em público.

O problema que se colocou ao comissário foi o de saber como mostrar no espaço limitado da Galeria Municipal de Matosinhos uma obra tão vasta e formalmente tão variada como a de Julião Sarmento, que ao longo de meio século tem experimentando todos os meios, da pintura à fotografia, da escultura ao cinema, da colagem à performance. E ainda por cima estando ainda na memória de todos a gigantesca retrospectiva Noites Brancas, que Serralves dedicou ao artista em 2012-2013.

Evitando a armadilha de tentar cobrir todos os períodos, técnicas, meios ou temas do artista, Miguel von Hafe Pérez optou por tentar seleccionar um pequeno número de trabalhos que, no seu conjunto, permitisse ao visitante aceder de forma rápida e intensa às questões essenciais desta obra, onde o corpo, e em particular o corpo feminino, na sua representação quase sempre incompleta e fragmentada, ocupa desde o início um lugar central.

Com três esculturas de corpos femininos vestidos, mas sem cabeça, a ocupar as extremidades e o centro do espaço, a exposição, não pretendendo seguir qualquer cronologia, acaba por incluir obras que dizem respeito a um arco temporal de 45 anos: as mais antigas são desenhos e uma colagem de 1966, a mais recente, Tempo, é uma tela de 2011.

Há núcleos fundamentais da obra de Sarmento que não puderam ter lugar nesta exposição, como os filmes que realizou nos anos 70, mas o cinema, enquanto questão, atravessa toda a sua produção e está diversamente presente – como o está a grande tradição literária moderna – em muitas dos desenhos, pinturas e esculturas que agora se poderão ver em Matosinhos até meados de Outubro.

Uma das grandes curiosidades de No Fio da Respiração é uma colagem inédita de 1966, na qual, nota Miguel von Hafe Pérez, “está já tudo: a questão do fragmento, a mulher, a cultura pop, o sexo, a dimensão política”. É “uma síntese perfeita”, conclui, que antecipa o que iriam ser “muitas das preocupações recorrentes” da obra de Sarmento.

Mais discreta, mas não menos interessante, a outra obra inédita incluída na exposição é um pequeno desenho a esferográfica de parte de um corpo feminino. “É espantoso como se consegue, numa simples linha, condensar um erotismo tão absolutamente vital”, comenta o comissário.

“A exposição ancora-se no corpo (da mulher) como sismógrafo de uma complexa teia iconográfica que referencia elementos da cultura contemporânea, nomeadamente a moderna tradição literária e cinematográfica e sedimentos de uma tradução ambivalente do quotidiano vivido, imaginado ou sublimado”, escreve o comissário na apresentação de No Fio da Respiração, assinalando a complexa desconstrução da realidade que esta obra opera, e que não se esgota nos tópicos, que reconhece “centrais”, do sexo, do voyeurismo e do fetichismo.

A afirmação banal de que a obra de arte impõe ao espectador que construa a partir dela a sua própria narrativa é em Julião Sarmento “particularmente efectiva”, diz von Hafe Pérez. Perante estes corpos femininos fragmentados, em poses que muitas vezes mantêm uma deliberada ambiguidade entre o que pode ser a representação de uma entrega voluntária e um acto de submissão possivelmente violento, quem olha não tem outro remédio se não completar, com o peso das suas próprias vivências e obsessões, as histórias que o artista deixa propositadamente em suspenso.

“Tentei criar uma exposição antológica mais iconográfica, mais condensada”, explica o comissário, confiante de que os visitantes intuirão “os temas que estão sempre presentes nesta obra, de forma mais evidente ou mais subterrânea, e independentemente de o artista usar o desenho, a pintura, a escultura”.

Julião Sarmento concorda: “Para mim, o media é apenas um instrumento”, garante o artista, que não se revê nos rótulos de pintor ou escultor, não apenas por serem redutores, mas por tornarem essencial o que é acessório.

“Tento perceber em cada momento qual a linguagem visual que melhor se adapta ao meu discurso, que resolve os problemas de forma mais expedita”, diz Julião Sarmento. “Se me interessa a fisicalidade no espaço, faço esculturas, quando isso não é particularmente importante, faço outras coisas”.

Sobre a escultura que Matosinhos lhe encomendou é que não quer levantar muito o véu, para “não estragar a surpresa”. Sabe-se apenas que a obra irá homenagear o político oitocentista Passos Manuel – natural do então julgado de Bouças, hoje concelho de Matosinhos, foi uma das grandes figuras da esquerda liberal do seu tempo –, que deverá ser inaugurada ainda este ano e que ficará instalada na marginal de Matosinhos, numa praceta desenhada pelo arquitecto Alcino Soutinho, mais ou menos em frente ao edifício (recentemente premiado) do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões.

A isto, Julião Sarmento acrescenta apenas um detalhe: “Por causa da ambiguidade, pouco conhecida, da relação entre o Passos Manuel e o seu irmão José Passos, resolvi utilizar também o irmão”. 

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