João Grosso volta ao cais de chegada que o fez partir para o teatro

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João Grosso tinha 29 anos quando apresentou a Ode Marítima pela primeira vez Miguel Manso

Fome. É de ter fome que João Grosso se lembra no fim da estreia de Ode Marítima, de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, no agora tão longínquo ano de 1987, ele com 29 anos, na sala-estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa. Ele com fome e outros a dizerem-lhe que tinha o mundo do teatro todo pela frente.

"Um actor capaz de um trabalho sem rede como este é capaz de tudo", escreveu então o crítico Carlos Porto no Diário de Lisboa. "É um actor que espera os amorosos de Molière, que espera os Lorenzaccios, os Hamlets que o nosso teatro, se não tivesse vergonha, devia desde já proporcionar-lhe." Mas João Grosso tinha fome.

"Tenho memória de uma não-memória. Gastava-se tudo. A maior parte das vezes terminava numa espécie de vazio", recorda. Um vazio que tanto lhe agrada. E cita, como se a sua frase chegasse ao cais onde aportavam os barcos de que Pessoa falava: "Uma vaga sensação parecida com um medo - O medo ancestral de se afastar e partir. O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo."

Medo, outra vez, no regresso ao Teatro Nacional D. Maria II (hoje, às 19h, com repetição amanhã, à mesma hora, e sábado, às 21h30, com entrada livre), medo como então, e de todas as vezes que o fez. E foram tantas, "porque uma vida inteira não chega para o compreender". Um espectáculo que se tornou uma imagem e uma vida. "João Grosso não se limita a depositar nos nossos ouvidos as palavras do poema, abre todos os nossos sentidos para os múltiplos sentidos dele", continuava Carlos Porto.

Um poema com "muitas coisas físicas, nervosas, mentais, que se calhar nem sei descrever". "É quase como se me movesse num espaço orgasmático metafísico, sem que esse orgasmo tenha que ser sexual e possa ser das ideias, das sensações, das emoções. Este é um texto que chega ao físico pelo pensamento e, mesmo no auge da fisicalidade, volta sempre ao pensamento."

João Grosso já não tem 29 anos, passaram mais 25, mas quando hoje estiver "sozinho, no cais deserto" do D. Maria II, a olhar "pro lado da barra" a olhar "pro Indefinido", vai olhar e contentar-se em ver um "pequeno, negro e claro, um paquete entrando". E nesse paquete veremos, talvez, todo o processo de aprendizagem que, com os anos, foi fazendo. "É quase chegar a um zero de vontade e deixar que a "alma" fale por si", diz-nos.

"Este texto é de tal maneira forte que ponho sempre a possibilidade de haver um descolamento da minha pessoa. Eu sei que vou partir para uma viagem."E quando regressa, e nós com ele, o que conta, o que viu, o que vê?

"Conforme caminhamos para velhos a nossa capacidade experiencial abre-nos muitas portas. Podemos compreender uma coisa racionalmente quando somos jovens, mas não a compreendemos da mesma maneira quando somos mais velhotes." De novo do poema: "Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas."

Poema editado em 1944

Ode Marítima foi publicado pela Ática em 1944, nove anos depois da morte de Pessoa, assinado pelo poeta-engenheiro Álvaro de Campos. "Epopeia ao contrário da Mensagem", escrevia Maria Estela Guedes no programa de estreia, "em que já não se contam os feitos mas o não -feito, em que o herói colectivo cede lugar a uma voz singular, anti-herói aspirante ao impossível". E, por isso, João Grosso fala de "um corpo que não existe". "É um corpo pensado, desejado, projectado. Um corpo feito de experiências reais, ou aproximativas, mas, no fundo, um corpo que não existe." E o perigo contido nessa liberdade, para o qual o actor não tem nem resposta nem formas, e por isso a procura constantemente, é o que o move.

"O texto é de um maquinismo perfeito, mas eu não consigo ter um conhecimento total para pôr a máquina a funcionar em toda a sua potencialidade. Aquilo que faço é tentar dar-lhe espaço", reconhece o actor. "Se começamos uma frase num determinado tom, melodicamente ela organizar-se-á de outra maneira." E, por isso, esta é uma peça para se fazer "olhos nos olhos com as pessoas". As mesmas para onde foi olhando, nas ruas por onde andou, há 25 anos, e tantas vezes depois disso, exactamente para não se agarrar e ter elementos de distracção que o obrigassem a estar em vários planos ao mesmo tempo. "Dentro de uma sala a coisa é muito mais concentracionária e estamos mais concentrados naquelas construções sintácticas. Ao fazê-lo no meio das ruas e das pessoas, do movimento e do som, da luz solar ou durante a noite, havia todo um universo à minha volta que me fazia agarrar-me mais ao cerne do movimento do poema."

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