Father John Misty explica o ABC do amor

I Love You, Honeybear, um dos álbuns mais aguardados do ano, é um novo renascimento de Father John Misty. Foi salvo pelo amor, mas não exactamente como esperava. Joshua Tillman fala ao Ípsilon.

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Joshua Tillman, autor de vários discos em nome próprio que ninguém ouviu, depois baterista dos Fleet Foxes, depois disso renascido enquanto Father John Misty, autor de um Fear Fun repleto de folk-rock muito terno que escondia no seu interior humor mórbido e desolação emocional, demorou três anos a dar sequência a esse momento de refundação.

Com Fear Fun elogiado pela crítica e alvo de culto devoto, Joshua Tillman, o auto-mitificador, em modo auto-satírico, que descobrira a sua voz encavalitado numa árvore, pedrado em cogumelos, em Laurel Canyon, transformou-se em estrela improvável (e sex-symbol indie, o que muito o faz rir). Agora, com I Love You, Honeybear, um dos álbuns mais aguardados do ano, mudou novamente. No período entre os dois álbuns, apaixonou-se pela fotógrafa Emma Elizabeth Garr, hoje Emma Elizabeth Tillman, e deixou de se esconder. Fez um álbum de canções de amor. Ou melhor, um álbum sobre a intimidade de uma relação a dois. Não, nada disso. “Na verdade, este não é um álbum sobre o amor. É um álbum sobre mim”, dirá ao Ípsilon desde Nova Orleães, a cidade para onde se mudou depois de alguns anos sob o sol californiano.

Este diverso I Love You, Honeybear, repleto de orquestrações opulentas, baladas para piano ao modo Randy Newman, rock comunal extraído da Califónia, década de 1970, ou assomos de grandiloquência Phil Spector, é então o álbum em que Joshua Tillman, homem que via o “mórbido em tudo” e que tinha “tendência para o grotesco”, como nos dizia em 2012, teve que aprender a lidar com algo novo – e, oh privilegiados, vamos poder descobrir o novo disco em Paredes de Coura (Father John Misty foi anunciado esta semana como o primeiro nome no cartaz do festival).

“Foi muito duro fazer este álbum”, afirma. “Demorei tanto tempo porque tinha medo de ser sentimental. O outro [Fear Fun] é muito torcido e loquaz. Este não tem nada de loquaz”. Dito isto, Tillman interrompe o raciocínio e anda um pouco às voltas de uma ideia que não quer soltar. Acaba por confessar: “Só consegui fazer estas canções funcionar no dia em que a Emma me disse que não podia ter medo de as deixar ser bonitas. Foi aí que deixei de resistir: ‘Estou a fazer um álbum bonito, e, ou será óptimo por essa razão, ou será estúpido por essa razão. Não poderá ser outra coisa além dessas duas”.

Arriscamos dizer que é qualquer coisa mais. Um homem pode mudar, mas não abandona totalmente a sua natureza. “Disse para mim próprio que poderia mostrar-me tão vulnerável quanto quisesse, desde que o escondesse em arranjos grandiloquentes à filme da Disney. O raciocínio convencional diz que se tens uma canção vulnerável, então a música tem que exibir um cliché de ternura. Os meus instintos levam-me a subverter essa convenção”. Não, este não é uma colecção de canções de amor convencionais.

Ouvimos I love you, honeybear, a primeira: “Everything is doomed / and nothing will be spared / but I love you, honeybear”. Avançamos no alinhamento. When you’re smiling and astride me: “You see me as I am, it’s true / aimless fake drifter / and the horny man-child, Mama’s boy to boot”. Voltamos a I love you, honeybear: “I brought my mother’s depression / You’ve got your father’s scorn / and a wayward aunt’s schizophrenia / But everything is fine, don’t give in to despair / ‘cause I love you, honeybear”. É lindo o amor, não é?

Estamos sentados numa secretária em Lisboa, Joshua Tillman esta deitado na cama em Nova Orleães (“estou na minha cama, e se estou na minha cama, estou em Nova Orleães”, informara a início). Em determinado momento, confessará que, apesar de 90 por cento das canções alguma vez escritas abordarem o amor, quem as ouve não quer ser confrontado com a verdadeira natureza do afecto. “Isto ainda está por provar, mas não acredito que a maioria das pessoas queira ouvir a realidade do amor”, diz. “Na verdade, não acho que queiram a realidade da maioria das coisas. Não querem a realidade do poder, da política ou da religião. Querem ilusões”. O álbum é a sua realidade.

Joshua Tillman casou com Emma Elizabeth em 2013. Confessional a contragosto (a confissão surge sempre matizada por humor), pragmático sem ilusões, que tem ele a dizer sobre a vetusta instituição do casamento? Que “não há nada de mágico em trocar anéis” e que, “de certa forma, não sabia o que estava a fazer”: “Foi instintivo, um instinto animal que me levou a andar em frente com isto, porque não havia justificação intelectual para o fazer. O disco vive muito dessa ideia”. Como canta em I went to the store one day, “let’s put an end to our endless progressive tendency / to scorn provincial concepts like your dowry in your daddy’s farm”.

O amor salvou-o, mas não exactamente pelas razões que esperava. “Para mim, a intimidade significa confrontar algumas das minhas características, como a minha tendência para o ciúme ou a constante carência de afecto. Transformei-me no raio de um bébé”, diz. A frase fica em suspenso. Era apenas a introdução para Tillman chegar ao ponto que queria acentuar. “Quando compus Honey bear [a primeira canção do álbum], a minha relação com a depressão começou verdadeiramente a reemergir”. Depois do choque – “achava sinceramente que o amor destruiria miraculosamente a minha depressão e desespero”. E, depois do choque, sobreveio a grande descoberta. “Confrontei-me com o facto de que isso não tem que acontecer. Talvez a minha depressão faça para sempre parte do que sou. Com sorte, não estarei sozinho. A transformação passa por te reconheceres como aquele bébé. E perceber que tens que crescer” – observe-se a capa do novo disco e descubra-se Tillman: é o pequeno Cristo barbudo no colo de Maria, rodeado por monstrengos vagamente Boschianos.

Como cresceu Tillman
Joshua Tillman, 33 anos, é o mais velho dos quatro filhos de um casal de cristãos devotos. O pai trabalhava no departamento de vendas de uma empresa de informática. A mãe, doméstica, cantava no coro da Igreja. Pré-adolescente, os pais ofereceram-lhe uma bateria - só teria que cumprir a promessa de parar de batucar a toda a hora tudo o que estivesse à vista. Aos 18 anos abandonou a escola católica e, sem avisar ninguém, mudou-se para Seattle. Foi aí que começou a gravar enquanto J. Tillman os sete álbuns que quase ninguém ouviu – a família não os ouviu certamente: “não concordamos com a tua escolha, não nos envies a tua música”, escreveram-lhe quando lhes endereçou alguns cd. Depois chegou a oportunidade de integrar os Fleet Foxes enquanto baterista, experiência que achou que seria salvadora (finalmente poderia viver só da música), mas que se revelou estranhamente frustrante – passou esse período “de cérebro desligado, só a tentar chegar de um concerto ao outro”, contava-nos há três anos. Muito mudou desde então. Como cresceu Joshua Tillman.

Transformou-se em Father John Misty e lançou o recomendadíssimo Fear Fun. Edita, três anos depois, I Love You, Honeybear. Um álbum maior. Produzido por Jonathan Wilson, também cantautor com a história da folk e do psicadelismo californiano na ponta dos dedos, é uma colecção de canções de uma majestosidade arrebatadora. O espírito solar dos Beach Boys engrandecido nas orquestrações de Van Dyke Parks em The night Josh Tillman came to our apt.; a sugestão soul no veludo de When you’re smiling and astride me; a beatífica Strange encounter deliciosamente maculada pela guitarra distorcida; ou o estranhíssimo synth-pop de True affection, momento pavoroso num álbum (quase) imaculado: “Compus essa música em digressão, enquanto tentava namoriscar através de mensagens de texto e email, por isso tinha que ser também uma canção feito com aparelhos estranhos, inumanos” – aceitamos a explicação, mas continuamos a pensar que a peça deveria ter sido riscada do alinhamento.

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Depois, há a tremenda Bored in the USA, que é balada violentíssima, retrato de uma dor insanável, canção que, estamos certos, vamos ouvir muitas vezes ao longo do ano. Forma com True affection o par que foge ao tom geral de I Love You, Honeybear. Neste caso, é fuga bem-vinda. Apresente-se a canção activista de Father John Misty.

Hino para piano e melancolia, com Tillman cantando o “subprime”, uma educação inútil ou a alegria de acordar para mais um dia sem sentido, num corpo, o seu, que é nada mais que um estranho. “Save me white Jesus!”, ouvimo-lo, enquanto as gargalhadas enlatadas se soltam cada vez mais alto e a banda cresce à volta da canção. Activismo, portanto, mas segundo Tillman. “É uma canção sobre desespero e sobre o desespero de sentir que não vêem o teu desespero como legítimo. Os liberais brancos, quando ouvem uma canção assim, adoram-na porque assumem que é sobre o outro. Mas se alguém, qualquer um, ouvir esta canção e não conseguir sentir empatia por ela, então a canção é um falhanço”.

Logo depois do desvio, somos devolvidos a rumo original. Chega Holy shit, a canção da resolução, a da reconciliação de Tillman consigo mesmo. “And if love is just an institution based on human frailty / What’s your paradise gotta do with Adam and Eve? / Maybe love is just an economy based on resource scarcity / But our fantasy is what that’s gotta do with you and me”.

Tudo termina bem. Joshua Tillman revela-se. Está quente o coracão do céptico, do sátiro, do depressivo. É mesmo verdade: este amor, não sendo o que esperávamos, é estranhamente bonito.

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