Emoção e humor

Depois da tetralogia do seu alter-ego Bandini, chega-nos agora o romance mais autobiográfico de John Fante.

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John Fante: um inventário do que é risível em nós, das nossas misérias, fantasias e pretensões

John Fante (1909-1983) fica na história da literatura como um dos grandes autores norte-americanos do século XX. A sua escrita original, distante do que se fazia na época em que começou a escrever (mais refinada e erudita) influenciou autores como Bukowski. Os seus livros são uma espécie de inventário do que é risível em nós, das nossas misérias, fantasias e pretensões. Ao criar a personagem Arturo Bandini (o seu alter-ego que lhe serviu para uma tetralogia), fez dele um anti-herói trágico. Contraditório e mentiroso, patético e cínico, é um homem em permanente luta consigo próprio, e que encara a vida como um palco onde pode representar o papel que quiser. Mas os que escolhe para si parecem nunca ser os que melhor se lhe ajustam.

Ainda não tinha terminado a tetralogia de Bandini (os quatro livros estão traduzidos em português e foram publicados na última meia dúzia de anos), quando escreveu este Cheio de Vida. Não é um livro com a força dos romances anteriores, no entanto não deixa de mostrar o melhor da escrita de Fante: a emoção e o humor expressos com uma admirável simplicidade. Este é o seu livro mais autobiográfico (também o mais divertido), e até a personagem principal se chama John Fante, e é guionista e escritor. A história decorre em Los Angeles, anos 50 (o livro foi escrito em 1952), e Fante é um guionista de sucesso e bem pago. Na casa dos seus sonhos tudo parece ir bem até que as térmitas e os fungos chegam para acabar com o idílio. Os acontecimentos seguintes não trazem a paz de volta, de desventura em desventura, Fante e a mulher, Joyce, vivem momentos “cheios de vida”. “Os fungos e as térmitas haviam carcomido a madeira. Desfazia-se como pão macio entre os meus dedos. Fui até ao lava-loiça e bati com o calcanhar contra o chão. O golpe perfurou-o, deixando um buraco.” A acrescentar às várias desventuras há ainda o problema de alcoolismo do pai de Fante, a personagem, que origina uma relação filial tumultuosa, a que se junta ainda a gravidez da mulher e as crises místicas. John Fante, o autor, consegue tratar tudo isto com a simplicidade que só a mestria narrativa é capaz.

Há um episódio no segundo livro da tetralogia que evoca a personagem do romance Fome, do norueguês Knut Hamsun. Toda a obra de John Fante (incluindo obviamente Cheio de Vida) foi profundamente influenciada pela obra deste autor, e isso é evidente na alienação das personagens, mas tambem no tipo de “fluxo de consciência” da narração (não tão claro neste), na tentativa de mostrar o absurdo do seu narrador (mas sobretudo na relação entre ficção e realidade, imaginação e experiência), nas várias contradições interiores, na luta das personagens principais que parecem debater-se sempre (à imagem do louco escritor que passeia por Oslo, em Fome) num “campo de batalha de forças invisíveis”.

Em Cheio de Vida há pelo menos um episódio hamsuniano, quando a personagem de Fante, e enquanto a sua mulher está grávida, vai consultar um médico dizendo que estádoente e que a sua doença está relacionada com o bebé que ainda não nasceu. Neste episódio que ocupa menos de uma página, Fante consegue concentrar quase todas as características que absorveu de Knut Hamsun e da sua personagem do louco: o absurdo, as contradições interiores, a incapacidade de lidar com situações que nunca experimentou anteriormente, a instabilidade emocional, o fio da navalha onde toda a gente parece caminhar. São assim todas as personagens de Fante, em maior ou menor grau. Emoção e humor sempre àflor da pele.

Nenhum autor está mais perto de Hamsun do que John Fante, quer no estilo quer no espírito, e isso é visível ao longo de toda a sua obra, a começar por Estrada para Los Angeles, continuando depois em Pergunta ao Pó (o título vem da frase do tenente Glahn, protagonista de Pan: “Pergunta ao pó da estrada e às folhas que caem...”), para terminar no último livro do autor americano, Dreams of Bunker Hill, com a célebre evocação “Please God, please Knut Hamsun, don’t desert me now”.

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