Drogas e festivais

Nesta altura do ano, no fecho dos telejornais, depois das tricas da política nacional, dos incêndios em anos quentes (não é o caso de 2014) e da pré-época do futebol, lá surgem os festivais de música.

O pivô passa a emissão em directo para um repórter no local que, invariavelmente faz as perguntas de sempre sobre o cartaz, os amigos ou o ambiente, rodeado de jovens excitados. Os festivais constituem uma realidade com vinte anos, mas na abordagem continuamos no infantário, tratando-os com superficialidade.

Para animar a temporada com mais folclore, de dois em dois anos, realiza-se na Beira Baixa o Boom Festival e nas TVs e jornais espera-se ansiosamente pela conferência de imprensa da GNR.

Este ano, nada de novo. Depois de desencadeada mais uma grande intervenção a GNR revelou os resultados da operação, com detidos e apreensão de estupefacientes. Novidade foi o líder da força policial, major Santos Alves, ter dito que é preciso entender que “existem drogas em todos os festivais” e que “não se deve marcar negativamente o Boom” pela presença de estupefacientes.

Há muito que se faz passar a ideia de que existe uma correlação directa entre diferentes consumos de substâncias aditivas e diversos tipos de músicas de dança. Talvez porque a música (principalmente quando em combinação com a dança) convida à transcendência. O Boom tem sofrido com essa conexão. Por outro, paradoxalmente, também beneficia dela, porque a sua aura de contracorrente também se constrói a partir dessa tensão.

Hoje em dia parecem ser as próprias forças policiais a sentir as limitações de meras acções repressivas, ao mesmo tempo que assumem até alguma responsabilidade pela forma estigmatizante como o evento tem sido visto em Portugal.  Não é difícil de perceber porquê. A GNR está no terreno. Contacta com participantes. Com o tempo foi entendendo o Boom como um todo, para lá dos simplismos. É aliás revelador falar com as populações que vivem em redor do festival, ou ler a imprensa regional da Beira Baixa que tem acompanhado de muito perto o evento, comparando-as com as notícias da ausente imprensa nacional ou com os comentários de quem nunca lá pôs os pés.

Não se trata de dizer que não existem drogas no Boom. Há consumo, mas isso não significa que quem vai lá seja consumidor.

Nem se trata de relativizar essa ocorrência argumentando que noutros eventos, festivais, arraiais, queimas das fitas ou até festas de escritórios de advogados, seria também fácil de constatar a existência de consumidores de drogas, se operações policiais de envergadura semelhante ali fossem desencadeadas. Embora saibamos que existe uma ligação entre a cultura de grupo e droga.

Nem se trata de minorar esse aspecto, contrapondo-o com o facto de ser um dos poucos eventos pensado por pessoas para pessoas, e não de marcas para consumidores, ou que existe ali uma tentativa de pensar o mundo para lá dos padrões dominantes do mero entretenimento. Também seria fácil de argumentar, como defendem tantos especialistas, que o álcool é o principal problema de toxicodependência em Portugal, e deslocar a discussão.

Tudo isso é verdade. Mas a questão não é essa. A questão é se o jogo viciado do gato e do rato não poderá funcionar paradoxalmente como incentivador do consumo, quando se sabe que os jovens quando querem autonomia o fazem pelo confronto.

A questão é que para uma intervenção adequada é preciso acompanhar e perceber as culturas que as contextualizam. E no caso do Boom isso tem sido feito de forma enviusada até agora, motivada pelo desconhecimento, que conduz ao estigma.

E não é por causa da organização do mesmo, que tenta esclarecer, fomentando uma estratégia no sentido da redução de riscos, encarando a questão de forma adulta. Por vezes movendo-se entre tensões não resolvidas, mas não recusando a prevenção, a hipótese reparadora, enquadrando e discutindo abertamente o assunto em palestras e convidando especialistas para o terreno.

O assunto é delicado. Mas mais do que reprimir importa perceber o significado social deste tipo de consumos, o seu carácter recreativo e colectivo, alcançando se constituem uma fuga à norma ou se são hoje a norma, porque só compreendendo o contexto geral se pode aspirar a interferir no consumo individual.

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