Deve ser isto o rock’n roll

O universo de Ty Segall parece delimitado, mas, álbum após álbum, mostra-nos novas formas de olhar aquilo que julgávamos já ter visto antes.

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Emotional Mugger é um álbum directo e intenso, com um som incandescente DENEE PETRACEK

W.U.O.T.W.S., a décima e penúltima canção de Emotional Mugger, não será aquela a que regressaremos mais vezes. É uma colagem de vários excertos sonoros de tons e intensidades diferentes, como se viajássemos em velocidade supersónica pelo tempo e espaço em que o sucessor do justamente celebrado Manipulator foi gravado. A peça representa bem Ty Segall: homem de tiro rápido e existência frenética, grava álbum após álbum, em nome próprio, em bandas paralelas ou colaborações, por não conceber fazer as coisas de outra maneira.

Inadvertidamente, Ty Segall tem passado o tempo a responder a essa questão sacramental sobre o que é realmente o rock’n’roll e, mais importante, o que é necessário para que o sintamos relevante, vivo e activo no século XXI. Já o respondeu com a aspereza lo-fi dos inícios, com o hino aos riffs como salvação regada a fuzz de Twins, com a abrangência de Manipulator, em que cabia cintilar glam e cuidado pop na composição, ou com as canções feitas jam electrizante dos Fuzz, banda em que ocupa a posição de baterista.

A nova inadvertida resposta à pergunta terá nascido de uma inquietação que preocupa o californiano Segall: a de que no mundo de comunicação em todos os segundos, em todas as direcções, com toda a gente, os “passageiros da sociedade moderna” se esquivam a compreender a profundidade emocional das coisas do mundo. Pode não ser evidente onde está a tal profundidade emocional neste álbum de rock’n’roll reptilíneo, mas é evidente o impacto emocional que provoca.

Emotional Mugger é um álbum directo e intenso, com um som incandescente – as guitarras parecem cabos eléctricos cortados, desvairados (e isto é um elogio). É o álbum de alguém que, há um par de meses, editou Ty Rex, álbum de versões dos T. Rex de Marc Bolan, e nota-se o fascínio, quer na voz planando andrógina nos agudos, quer no balanço de Mandy cream e Candy Sam. O glam, porém, acaba aí.

Estamos perante o trabalho cuidado de um artesão de estúdio: turbulência enxertada em canção de passo lento, Californian Hills; sintetizadores sinistros como tapete sonoro; as vozes de contraponto em tom sci-fi cartoonesco. Mas a grande virtude de Ty Segall, que conta no álbum com participações do baterista Dale Crover, dos Melvins, de Mikal Cronin, de King Tuff ou do seu colega nos Fuzz, Chris Moothart, é a forma como esconde todo esse meticuloso trabalho de bastidores: esta música parece ter sido criada com a urgência do momento e registada no estúdio sem pausas ou demoras. Depois, entra em cena a imaginação enformada pela história, toda a história que Segall tem já entranhada em si. Neste caso, resultou num álbum pintado a negro, com guitarras, baixo, bateria e sintetizadores pensados como electrónica sinistra (Emotional mugger/Leopard priestess), com Syd Barrett a trocar o verde de Cambridge por uma cave punk em Los Angeles (Breakfast eggs), com as entranhas do power-pop revolvidas com prazer em Diversion, com os Black Sabbath a colidirem de frente com os Funkadelic (Squealer two é uma delícia). O universo de Ty Segall parece perfeitamente delimitado, mas, álbum após álbum, mostra-nos algo mais para descobrir, novas formas de olhar aquilo que julgávamos já ter visto antes.

“Like a bag of candy, I’ll give you pleasure”, canta Segall logo a início. Parece, ao mesmo tempo, irónico e sincero, uma promessa e uma ameaça. Deve ser isto o rock’n’roll.

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