Deborah Kerr, a transgressora disciplinada

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Deborah Kerr DR

O beijo incendiário entre uma mulher adúltera e um sargento nas vésperas da II Guerra Mundial é a imagem que eternizou Deborah Kerr, que partilha com Burt Lancaster essa imagem na história do cinema. Deborah Kerr, a escocesa que foi bailarina antes de ser uma das maiores actrizes do cinema americano da década de 1950, morreu terça-feira, aos 86 anos, com Parkinson.

É preciso falar de Até à Eternidade para falar de Deborah Kerr. O filme realizado por Fred Zinnemann em 1953 criou uma imagem forte do encontro, numa praia havaiana, entre um homem e uma mulher que, com um beijo impudente, simbolizaram o romance, a transgressão e se tornaram ícones de um filme que retratou a corrupção moral do exército norte-americano prestes a entrar na guerra.

Eram os anos 1950, a revolução sexual estava longe de começar e o filme, com os seus laivos de erotismo abafado, chegava quase cedo demais. Foi considerado escandaloso e Kerr, nomeada para o Óscar de Melhor Actriz pela interpretação de Karen Holmes, não foi distinguida pela Academia americana.

Era a segunda vez que a actriz, nascida em Helensburgh, na Escócia, a 30 de Setembro de 1921, recebia uma nomeação para um Óscar. Seguir-se-iam outras quatro, sem que tenha ganho qualquer delas. Em 1994, Kerr recebia o Óscar pela carreira. Foi descrita pela Academia como uma actriz “de uma graça e beleza impecáveis cuja carreira foi marcada pela perfeição, disciplina e elegância”.

A actriz tem uma fama dúplice. Ficou conhecida pelos papéis interpretados nos seus anos americanos, encarnando mulheres fortes cujas pulsões e desejo forçavam a cultura cinematográfica a redefinir as suas fronteiras no que tocava à forma como a sexualidade era representada. Mas também é lembrada como uma actriz sem assomos de vedetismo e com porte real. “Nunca tive qualquer discussão com um realizador, bom ou mau”, disse Kerr há uns anos. “Há uma forma de dar a volta a tudo, se se for suficientemente esperto”, disse, citada pela agência AP.

1953, a mudança

A ausência de conflitualidade terá sido um dos segredos da longevidade da sua carreira. Deborah Kerr, filha de um arquitecto naval, começou a fazer ballet aos cinco anos em Bristol, quando a família se mudou para Inglaterra. A dança levou-a aos palcos, quando se estreou, com 17 anos, na peça Prometeu. Até ao início da II Guerra, fez pequenos papéis teatrais em Londres e leu histórias para crianças aos microfones da BBC Radio. Quando se estreou, finalmente, no cinema, no filme Contraband, em 1940, não teve sorte. As suas cenas ficaram-se pela sala de montagem.


Entretanto, a guerra abatia-se sobre a Europa e Kerr continuou a trabalhar no cinema britânico até ao fim do conflito, quando, após uma série de críticas elogiosas, especialmente pelo papel de uma freira com dúvidas sobre a sua vocação em Quando os Sinos Dobram (1947), foi contratada para contracenar com Cary Grant em Traficantes de Ilusões, de Jack Conway.

Foi o bilhete de entrada em Hollywood e a apresentação a um dos seus outros famosos pares no cinema. Grant e Kerr são o casal apaixonado que se encontra e desencontra no topo do Empire State Building, em Nova Iorque, n’O Grande Amor da Minha Vida, de Leo McCarey (1957), homenageado anos depois por Nora Ephron em Sintonia de Amor, com Meg Ryan e Tom Hanks.

Seguiram-se outros papéis de mulheres serenas e bem comportadas, até à sua decisão de quebrar o padrão com Até à Eternidade, em que assumia o interesse por personagens femininas menos domadas. Seguiram-se O Rei e Eu (1956), de Walter Lang e com Yul Brynner, Heaven Knows, Mr. Allison (1957) de John Huston, Vidas Separadas (1958), com David Niven, e The Sundowners (1960), no qual é novamente dirigida por Fred Zinnemann. Todos estes filmes, juntamente com Edward, My Son (1949), de George Cukor, lhe mereceram nomeações para o Óscar de Melhor Actriz.

Kerr participou ainda em Quo Vadis (1951), e Bom Dia Tristeza (1958), de Otto Preminger e no qual contracena novamente com David Niven, além de Jean Seberg e Geoffrey Horne. Fez A Noite da Iguana (1964), de John Huston, Casino Royale (1967) – no qual, aos 46 anos, foi Bond Girl – e foi com a adaptação de Elia Kazan do seu romance O Compromisso, em 1969, que decidiu tirar uma espécie de licença sabática do cinema. Sentia-se “ou demasiado jovem, ou demasiado velha” para os papéis que lhe apresentavam.

Passou pela Broadway, fez televisão e foi distinguida pela Rainha de Inglaterra com a Ordem de Comandante do Império Britânico. Desde a década de 1960 que dividia o seu tempo entre Klosters, na Suíça, e Marbella, em Espanha, onde vivia com o seu segundo marido, o escritor Peter Viertel.

Regressou recentemente ao Reino Unido, quando a sua saúde começou a decair, e morreu terça-feira. “A família estava com ela. Sofria de Parkinson há algum tempo e tinha acabado de fazer 86 anos, era uma senhora idosa”, explicou ontem Anne Hutton, a agente, quando deu a notícia. “Apagou-se lentamente.”

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