Corta-e-cola até à derrota final

1. Um leitor instou-me a escrever sobre a nossa gente, visto que agora moro em Portugal. Não sei o que seja a nossa gente, mas a minha gente inclui brasileiros, palestinianos, israelitas, afegãos, mexicanos, açorianos ou transmontanos, e é com todos eles que escrevo, seja de onde for. Uma das vantagens de Portugal, este trampolim, é que já nascemos prontos a saltar. Vamos uns, vimos outros, na contramão do confinamento, porque é possível, e para que seja possível. 

2. Ninguém sabe tanto sobre confinamento como os meus amigos em Gaza, que me protegeram quando nada os protegia, até à última guerra que passámos juntos, em 2009. Foi a última vez que lá estive, e sem esses amigos, Ayman Nimer, a sua mulher Heba, e as três filhas de ambos, Lulu, Mimi e Nunu, muitas reportagens do PÚBLICO não teriam existido. As notícias de 2014 parecem repetidas de 2009, que já pareciam repetidas de anos anteriores, e assim sucessivamente, como diria João César Monteiro. A diferença é que em 2009 eu estava lá e Ayman não precisava de me escrever pelo Skype a meio da noite, como agora (“Custa muito a passar o tempo até de manhã, quando Heba e as meninas podem dormir, porque só se sentem seguras quando o sol se levanta e fica brilhante, mas claro que não é um sono profundo, porque as pessoas não conseguem dormir profundamente durante o dia, é a estrutura biológica dos seres humanos, seja como for, nunca é um sono contínuo, e por aí fora, e isto há 11 dias, podes imaginar como é difícil manter o foco e a concentração, estamos alerta o tempo todo, prontos para todas as opções, incluindo ficar debaixo de ataque directo, muitos cenários………. opppppps, é mesmo cansativo”).

3. Privação de sono: no caso das três filhas de Ayman, desde que nasceram. Gaza tem vários recordes involuntários, como ser o único território do mundo com 40 quilómetros de comprimento por seis a dez de largura, onde quase dois milhões de pessoas não podem fugir para lado algum, mesmo que caiam bombas, como agora, como em 2009, etc. Quando esta crónica sair, os 11 dias de que fala Ayman serão 19, contando desde o início da Operação Limite Protector, eufemismo das forças armadas israelitas para a guerra de 2014, que também parece repetido do eufemismo da guerra de 2009. A eleição de Bibi veio na cauda dessa guerra. De facto, tudo estaria como em 2009, se não estivesse, ano a ano, pior. Corta-e-cola até à derrota final.

4. “Para a minha geração, é uma vergonha chamar-lhe uma guerra. Lutámos contra os exércitos árabes, vimos os nossos aviões ser abatidos, os nossos tanques a explodir, enterrámos dezenas e dezenas de camaradas em guerras sucessivas. Agora esta coisa, um dos mais fortes exércitos do mundo a atacar uma Gaza desamparada, não é algo a que eu chame guerra.” Isto era o historiador Zeev Sternhell, uma referência dessa minoria estraçalhada que é a esquerda israelita, quando o entrevistei na sua casa de Jerusalém, em 2009. 

5. A vergonha de Sternhell é a vergonha de quem fez Israel à custa de muitas guerras, veteranos que juraram não ser fracos depois do Holocausto. Eles vêem aquilo que construíram ser moral, política e financeiramente corrompido pela ocupação crescente dos territórios palestinianos, com a contínua deslocação de cidadãos israelitas para colonatos e a contínua apropriação de recursos naturais, numa contínua violação de todas as resoluções internacionais. O governo de Bibi Netanyahu tem radicalizado a ocupação de uma forma que no presente é homicida para os palestinianos e no futuro será suicida para os israelitas. Impressiona-me o discurso a curto prazo de quem defende Bibi, porque acha que assim defende Israel. Na lógica de quem quer preservar o Estado de Israel, o primeiro alvo devia ser o governo de Bibi. Nada trai tanto a herança do Holocausto que justificou a fundação de Israel, nada afasta tanto Israel de uma solução política e portanto nada o aproxima tanto do seu fim. Se ninguém faz tanto mal ao mundo islâmico (incluindo a resistência palestiniana, por arrasto) como os fanáticos pós-Al-Qaeda no Médio Oriente ou em África, ninguém faz tanto mal aos judeus, aos israelitas e ao Estado de Israel como os fanáticos de que Bibi é instrumento. Nesse sentido, pela escala e consequências, a estratégia do actual primeiro-ministro de Israel só favorece o anti-semitismo.

6. A propósito, e poupando trabalho a algum comentador mais desocupado: tenho amigos judeus em Portugal e no Brasil, amigos judeus israelitas em Israel, gosto de acreditar que eu própria terei uma costela vizinha, árabe ou judia, e quero dizer, como os judeus dizem (wishful thinking): ano que vem, em Jerusalém. Deixo o bumerangue do anti-semitismo aos militantes que tanto se entretêm com ele, achando que cumprem o seu dever pela repetição de fórmulas como Israel ter o direito de se defender dos ataques do Hamas. Meio milhar de civis palestinianos mortos para três civis israelitas (à hora a que escrevo) não é um lamentável efeito colateral desse direito, nem um crime do Hamas que usa a população como escudo, mas antes de mais um crime de Israel (quanto a este ponto, recomendo o incansável Uri Avnery, 90 anos, pai espiritual da esquerda israelita pacifista, que na sua última coluna semanal aplica a retórica de Bibi ao bombardeamento de Londres na II Guerra: um relato Monty Python). 

7. À hora a que escrevo, o que o actual Governo de Israel conseguiu com esta guerra foi matar mais umas centenas, ferir mais uns milhares, destruir mais uma parte de Gaza e ter o aeroporto de Telavive quase deserto, porque muitas companhias internacionais se recusaram a voar para lá, depois de um rocket do Hamas cair perto. Antes de Israel ter o direito de se defender de qualquer ataque do Hamas, teria o dever de acabar com a ocupação do território que o Hamas comanda, Hamas esse eleito quando a situação em Gaza chegou a tal degradação, alimentada por Israel, que os palestinianos quiseram tentar uma alternativa à Fatah, alternativa essa que Israel já usara a seu favor, etc, etc. Eu estava lá em 2006 quando o Hamas ganhou as eleições, sob a vigilância atordoada da comunidade internacional. Querem acabar com os rockets do Hamas? Comecem por acabar com a ocupação. Sem ocupação, o balão do Hamas esvazia. Querem acabar com a pressão internacional, os boicotes de cientistas e celebridades, os cancelamentos das companhias aéreas, a queda na bolsa de valores mundial? Acabem com a ocupação, desfaçam os colonatos, cumpram as resoluções internacionais. Quem fortaleceu o Hamas foi a ocupação israelita, combinada com a decadência da Fatah, toda uma aliança simplesmente favorável à continuação da guerra por todos os meios.

8. Nunca cancelei a recepção de emails das organizações israelitas e palestinianas, então ao longo do dia vou recebendo as actualizações de um lado e do outro. Do lado de Israel, o GPO (Government Press Office, sem o qual nenhum jornalista tem acesso a Gaza) informa-me que devido “à continuação dos combates” os jornalistas não podem entrar nem sair de Gaza (corta-e-cola 2009). Do lado palestiniano, todos os dias recebo a notícia da morte de mais um jornalista local. Já não faço parte da redacção do PÚBLICO, mas o PÚBLICO também não tem ninguém em Gaza. Cada vez é mais caro fazer reportagem e cada vez será mais difícil cobrir Gaza. 

9. À hora a que escrevo, 2h42 da manhã, Ayman não está online, e o mais provável é que já não tenha electricidade, porque só 10 por cento de Gaza ainda tem electricidade. Acredito que desde 2005, quando nos conhecemos, muito mais gente rejeita a estratégia de Israel, e disse-lhe isso na última vez que falámos. Ele disse que sim, que sentia isso em tudo o que lhe chega de fora e que isso ajuda a manter a força. É por isso que vale a pena cada sinal, mesmo à distância, de fora. Para mim, será uma forma mínima de reconhecimento, porque o melhor que sei sobre resiliência e dignidade aprendi-o com ele, com eles, nos piores dias da Faixa de Gaza.

10. Agora são 12h45 do dia seguinte. Ayman continua sem aparecer online. Leio que as famílias em Gaza se estão a dividir, pai e filhos para um lado, mãe e filhos para outro, para que pelo menos uma parte sobreviva. Não sei como faz uma família com três meninas. 

Foto
Palestiniano corre com bandeira no sábado, 20 de Julho Finbarr O'Reilly/REUTERS

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