Brecht, homem orgulhosamente novo

Era tudo menos um clássico. Um rufia, um escravo de si próprio e dos seus apetites, fossem eles o trabalho ou a carne. Um manipulador, mas um genial tradutor da vida e um analista único da História. Stephen Parker escreveu um dos mais completos e profundos estudos dedicados ao autor.

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Quase no fim da vida, desencantado com o estado da recepção crítica do teatro, propunha que fossem os jovens apreciadores desta forma de arte a ter a seu cargo a recensão do que se ia produzindo foto: Fred Stein Archive

O homem que morreu há 60 anos cometeu o feito de ter sido um dos dramaturgos mais importantes do século XX. Mas, não menos do que isso, a sua obra poética, eleva-o ao panteão reservado a Goethe, Rilke, Hofmannsthal, ou Benn. Brecht não precisa de lhes disputar o lugar. Os versos que escreveu tornaram-se a voz do tempo, mas transcenderam, igualmente, o contexto epocal que os determinou. Possuem hoje a força de um clássico contrariado. BB era tudo menos um clássico. Um rufia, um escravo de si próprio e dos seus apetites, fossem eles o trabalho ou a carne. Um manipulador, mas um genial tradutor da vida e um analista único da História.

Com Bertolt Brecht, o teatro pôde ser um modo de questionar, mais do que entender, a História; a poesia foi um veículo para a afirmação do mundo, a enérgica recusa de todas as formas de cristalização e tirania, fossem elas culturais ou políticas. Ambas foram expressão de uma personalidade complexa e contraditória, abrangente e cheia de um brilho desafiante. Que agarrou a vida pelos cornos. Stephen Parker escreveu não a biografia definitiva – uma impossibilidade, sobretudo, em relação a Brecht –, mas certamente um dos mais completos e profundos estudos dedicados ao autor: Bertolt Brecht: a Literary Life (Bloomsbury, 2014).

Eu, Bertolt Brecht…

Brecht foi baptizado Eugen Berthold Friedrich Brecht. Deu pelo nome Eugen até aos 16 anos de idade, após o que passou apenas a responder por Bert. Já em 1922, endurecendo o nome que era também o do pai, transforma-o em Bertolt. Este endurecimento começou Brecht a forjá-lo – e a efabulá-lo – desde muito cedo. Ganhou, por exemplo, apreço por uma descrição que leu a respeito de Delacroix: “um coração caloroso que bate dentro de uma pessoa fria”. Um dos seus poemas mais ilustres viria a fixar, do modo mais perene possível, essa ficcionalização da rígida frigidez – “Eu, Bertolt Brecht, venho lá das negras florestas./ Minha mãe, quando inda andava no seu ventre,/ Levou-me pra as cidades. E o frio das florestas/ Estará dentro de mim ‘té que na morte eu entre.” (Poemas, trad. Paulo Quintela, Ed. Asa, 2007) Na verdade, a relação do dramaturgo e poeta com a Floresta Negra era, no mínimo, vaga – e seria preciso recuar até ao seu avô para constatar essa mais que ténue ligação. A raiz plebeia da sua família, essa, estava também longe de ser um facto gritante. Mais tarde, aliás, acrescentaria, num poema escrito décadas volvidas – Eu, Bertolt Brecht, filho de pais da burguesia/ Neste Verão, sentindo o tempo escasso,/ A consciência folheio, folha a folha, dia a dia,/ E a confissão seguinte faço.” (Poemas)

As suas origens familiares dificilmente poderiam deixar de se considerar burguesas – o pai detinha uma posição respeitável na empresa em que trabalhava, que viria mesmo a gerir. A mãe, claramente implantada na fé e piedade da sua religião, teria sido responsável pela decisão do católico pai Brecht de casar dentro do rito protestante. E, possivelmente, ficou a dever-se à influência materna o sólido conhecimento da tradição bíblica de BB. Sintomaticamente, a primeira peça de Brecht que chegou até nós chamava-se A Bíblia. Brecht, que sempre demonstrou enorme à-vontade com o manancial das Escrituras, pensou, todavia, em dedicar as suas primícias teatrais a François Villon – sendo a hesitação entre a temática bíblica e a iconoclastia marginal do poeta francês bem reveladora da personalidade do autor. A sua primeira colectânea de poemas, Cartilha Caseira, era já uma primeira atitude de ironia esclarecida em relação à religiosidade da moral burguesa. Em vez de piedade, a irrisão; no lugar da moral, a desfaçatez. O controlo morno da sacristia dá lugar ao ar desgovernado da “aragem”, como em “Liturgia da Aragem” – “Sobre isto calaram-se as avezinhas na floresta/Sobre todas as frondes reina paz/ Em todas as frondes reina paz/ Em todos os montes mal sentirás/ Uma ligeira aragem.” (Poemas)

Precoce e cruel, como muitos criadores de génio, Brecht ensaiou desde os primeiros anos o amoralismo glacial de muita da sua produtividade artística da madureza. Para grande desgosto da mãe, cuja afeição, vizinha da clara preferência por este filho, era constantemente questionada pela garrida rebeldia do jovem. “Fuma cigarros e lê os jornais/Sorve schnapps, assombra as mesas de bilhar/ Frio como gelo, com seus ares e trejeitos/ Sem qualquer humanidade”, auto-retrata-se ele, num poema de juventude.

Um exílio, todos os exílios

A vida de Brecht foi, naturalmente, marcada pelos dois conflitos mundiais. Na Primeira Grande Guerra, foi mobilizado, quase no fim do conflito, como ordenança hospitalar, colocado na sua Augsburgo natal. Foi, porém, a Segunda Guerra Mundial que teve o impacto maior na vida e obra de BB. Ainda antes, porém, foi a ameaça nazi, e depois a sua terrível ascensão, uma das marcas mais profundas do seu percurso.

Nos últimos anos da República de Weimar, foi o jovem radical e intrépido que nem a velhice, realmente, atenuaria – veja-se a irrequietude que o levou a viajar constantemente, mesmo até ao fim, que chegou relativamente cedo, aos 58 anos. No seu admirável prefácio a Teatro 1 (Livros Cotovia, 2003), Jorge Silva Melo resume, com brilhantismo inegável, o perfil deste BB inicial – “[Brecht] aprendeu a não respeitar as leis e a gostar dos canalhas e das vielas, a proclamar, vaidoso, a poesia das tabernas contra o bruxulear dolente das academias, a exigir da vida a aventura ilimitada. Há neste jovem Brecht, nesta avidez, neste leitor incessante de Rimbaud, tocador de guitarra como Wedekind, um ímpeto imparável. Para este Brecht, romântico extremo e anti-romântico por ódio à expressão das almas, o teatro (como para outros, nessa altura ou depois ou ainda agora, o cinema, a pintura, a música) nasce da literatura. Por isso, este homem orgulhosamente novo e assombrado por um cio secular tem de arrombar as portas aveludadas dos palcos com a brutalidade da palavra. Pois é na palavra roubada a Villon, no escárnio da pobre língua desse e outros salteadores, que o desejo se produz.”

São também os anos da colaboração com Kurt Weill. Estavam ainda longe a incompatibilidade dos dois homens geniais, a recusa de Weill em ajudar Brecht, nos EUA, costas voltadas. Para já, era a época de uma colaboração das mais proveitosas para o mundo das artes. Dela, nasce, por exemplo, Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny (Teatro 2, Livros Cotovia, 2004). Com o habitual rigor, Vera San Payo de Lemos explica o potencial revolucionário desta ópera colaborada. Tanto de um ponto de vista estético como ideológico “a estreia de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny origina um dos maiores escândalos suscitados por um espectáculo na República de Weimar. Claques de adeptos dos nazis e dos nacionalistas alemães manifestam-se ruidosamente durante o espectáculo e, na Assembleia Municipal, há quem apresente uma moção para impedir novas apresentações” (id.). “A esfera estética”, viria Brecht a dizer, “de forma nenhuma se deve ver como ‘acima’ da esfera dogmática”. Aqui, como em A Vida de Eduardo II (Teatro 2), o que interessava a Brecht era “o efeito de estranhamento”, ou seja de distanciamento. Como escreveu em Pequeno Organon para o Teatro, “O papel principal do teatro é explicar a fábula e comunicar o sentido por meio dos efeitos de distanciamento apropriados”. Conforme postulou, “O teatro não aristotélico emprega a crítica emocional.” Ao preconizar a não identificação, o contrário da catarse e da empatia, Brecht defendia que “a transformação total do teatro não deve ser obra de um capricho de artista, mas simplesmente corresponder a uma total transformação espiritual que a nossa época conhece” (Sobre as Dificuldades do Teatro Épico). Com o seu teatro épico, BB pretendia, não uma adesão emocional, mas uma reacção intelectual. Numa entrevista de 1926, afirmava: “Não deixo que os meus sentimentos invadam a composição dramática. Deformariam o mundo. Viso o estilo de representação o mais clássico, o mais severo, possível, um estilo que depende muito do entendimento. Não escrevo para a ralé que mais não procura do que a emoção.” Por exemplo, ao levar à cena Os Cabeças Redondas e os Cabeças Bicudas (Teatro 4, Livros Cotovia, 2006), em Copenhaga, Brecht registava com apreço que o público estivesse autorizado a fumar e a beber durante o espectáculo. Essa facilidade extirpava a produção teatral de toda a solenidade e a apaziguada sisudez do desempenho teatral segundo o (detestado) modelo burguês. Uma herança de buscada informalidade dos tempos de cabaré.

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Stephen Parker escreveu não a biografia definitiva - uma impossibilidade em relação a Brecht -, mas um dos mais completos e profundos estudos dedicados ao autor: Bertolt Brecht: a Literary Life foto: Nelly Peissachowitz

O avanço do nazismo foi forçando Brecht a iniciar um périplo no exílio que o levou à Dinamarca, Suécia Finlândia e Estados Unidos. A neutralidade sueca, perante a ameaça nazi, levou Brecht a compor a peça em um acto Quanto Custa o Ferro?, em que satirizava a anuência escandinava, sobretudo a permissividade dos Suecos, que permitia que se continuasse a mercar as matérias-primas com os autores da barbárie. Mas a grande peça de BB contra o horror da guerra foi Mãe Coragem e os Seus Filhos. Enquanto escrevia Mãe Coragem – com grande rapidez, como já sucedera com A Vida de Galileu –, “a Alemanha e a URSS tinham concluído o desmantelamento da Polónia”, conforme o exprime Stephen Parker. Como fizera em A Bíblia, Brecht utiliza a Guerra dos Trinta Anos como parábola para o seu próprio tempo. Um conflito europeu de consequências trágicas nos dois casos. Um caso de esmagamento económico e de aniquilação, violência de todos os quadrantes.

Resumindo a diferença (ou indiferença?) entre diferentes pousos de exílio: “Nem mesmo nas florestas mais remotas da Finlândia me senti tão fora do mundo como aqui [EUA]. As inimizades medram como laranjas e têm tão pouca semente como elas.”

A macieira e a barbárie

A situação de Brecht é a de alguém que se encontra numa encruzilhada. Podia guardar-se a imagem para toda a vida de BB. Entre a tradição – relida, modificada – e a vanguarda; entre o compromisso político e a preservação pessoa. Entre a ortodoxia e a refracção. Marxista, Brecht opôs-se ao que chamava “camarilha burocrática”, de Lukács e Alfred Kurella, “aqueles que se apropriaram e fizeram uso das doutrinas teóricas de Marx”. Leitor dos clássicos, Brecht pegara em Marlowe e no seu Eduardo II e transforma-o em A Vida de Eduardo II, peça com a qual pretendia gerar “um espectáculo que rompesse com a tradição shakespeariana dos palcos alemães, aquele estilo de monumentalidade oca, tão caro aos filisteus (Teatro 2).

“Dentro de mim lutam/O entusiasmo pela macieira em flor/ E o horror dos discursos do pintor de portas/ Mas só o segundo/ Me força a sentar-me à mesa.” (Poemas) A árvore, que representa, como é óbvio, o mundo natural, mas também a “ingenuidade” da poesia lírica, opõe-se neste poema, claramente, ao estímulo histórico e político. O “pintor de portas” é Hitler. O ditador, que Brecht apostrofou, de quem zombou e que metamorfoseou nas suas peças, é o terrível núcleo da história pessoal de Brecht. Será contra a “besta nazi” (Jorge Silva Melo) que Brecht lutará. Mesmo quando a sua poesia cede ao impulso lírico, é o mundo, em toda a sua convulsão, que mais chama o poeta e dramaturgo.

A Vida de Galileu tal como foi levada à cena na Dinamarca do seu exílio, seria, segundo Stephen Parker, a peça mais pessoal e “a obra mais crucial da biografia intelectual de Brecht”. Inicialmente intitulada A Terra Move-se, Brecht escreveu nela uma parábola de carácter veladamente biográfico em que o autor se concebe como alguém em luta contra os poderes instituídos e a rigidez coriácea da tradição. Um homem em conflito com “um tempo de reacção, como o seu” (Parker).

“Tudo o que é novo”

Quase no fim da sua vida, momentaneamente desencantado com o estado da recepção crítica do teatro, Brecht propunha que fossem os jovens apreciadores desta forma de arte a ter a seu cargo a recensão do que se ia produzindo. “A única coisa que importa é que lhes seja realmente permitido exprimir a sua opinião e que sejam apenas aconselhados politicamente”. Este desejo de confiar no que é novo, livre e desimpedido lembra as palavras de Benjamin – “Uma máxima de Brecht: ‘Não sigas o velho e bom, segue antes o novo e mau.’” (Walter Benjamin, Ensaios sobre Literatura, Assírio & Alvim, trad. João Barrento, 2016) E o próprio Brecht o escreveu, num dos seus poemas: “Porque sei:

Tudo o que é novo/ É melhor que tudo o que é velho.” (Poemas) Reflectindo sobre o papel que um teatro deveria ter, enquanto equipamento cultural, Brecht sintetizava da seguinte forma os predicados que lhe deveriam caber: “arrojo, imaginação, sabedoria e humor”.

De regresso a Berlim, Brecht é agora um consagrado reticente. Recebe o prémio Estalinem (que Thomas Mann recusara), assume cargos de relevo em instituições culturais, mas continuam as dificuldades, as críticas maldosas ou bacocas, a incompreensão e o filistinismo burguês. Intransigente até ao fim, trabalhando sempre, afixa um recado na porta do seu escritório, de aviso aos incautos. O autor precisava de tempo para a sua obra, escavando nas inúmeras obrigações que o assoberbavam. Mas o aviso é benigno, e a disponibilidade para o outro – mesmo quando tiranizado pelo génio titânico de BB –, essa, é a de sempre.

Descrevendo a sua casa, escreveu BB: “A sala maior tem cerca de nove metros quadrados, portanto posso ter várias secretárias para diferentes trabalhos. Na verdade, toda a casa é bem proporcionada; é realmente boa ideia viver em casas e com mobília que tenham pelo menos cento e vinte anos, digamos, um ambiente dos primeiros tempos do capitalismo, até que estejam disponíveis ambientes de um socialismo tardio.” Um visitante descreveu esse último apartamento de Brecht (hoje em dia, sede do Arquivo Brecht) como “uma desordem de cadeirões de formato curioso e desirmanados, com mesinhas muito pequenas, um pequeno harmónio, uma máquina de escrever”. Descreveu ainda duas fotografias: “uma de Marx quando a sua barba ainda era negra, outra de um muito jovem Engels”. Como se Brecht quisesse preservar os ideólogos do marxismo no mais puro, no mais jovem, do seu espírito, na sua mais radical mensagem de metamorfose e esperança.

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