“Andamos a viver acima das nossas necessidades”

Foto
David Machado tornou-se escritor depois de uma experiência de desemprego: “No meu caso foi muito bom” NUNO FERREIRA SANTOS

Quando o desemprego é o menor dos males. Quando o quotidiano é uma sucessão de absurdos. Quando tudo desaba e só os amigos e a família nos ligam a uma vida com sentido. Índice Médio de Felicidade é o novo romance de David Machado e questiona a sociedade em que vivemos

Aos 35 anos, David Machado escreve o seu terceiro romance, Índice Médio de Felicidade, que para a semana chega às livrarias, editado pela D. Quixote. Economista de formação, foi através da sua condição de desempregado que se assumiu como escritor, uma arte que tece em diversos estilos: romance, conto, histórias infantis. Dono de capacidade de observação e de critica social, David Machado constrói a história surpreendente de três homens — Daniel, Xavier e Almodôvar — cuja amizade, bem como a solidariedade pelos outros, vence todas as contrariedades e todos os absurdos da sociedade actual. Um hino ao amor que vence a crise neoliberal e rompe com o individualismo o consumismo.

O ficar desempregado para si foi bom. Permitiu-lhe escrever?

No meu caso foi muito bom. Andava a escrever, tinha contos, tinha um romance ainda no início, que nunca foi publicado. E sempre tive a sensação de que não era capaz de escrever a sério sem tempo. Hoje é uma certeza. Estava a trabalhar há um ano no Instituto Nacional de Estatística, sem férias. Estávamos perto do Verão e pensei: vou gozar o Verão e depois vou mandar currículos para voltar a arranjar emprego. Passados 15 dias já estava farto de não fazer nada, já tinha ido à praia vezes suficientes e fechei-me em casa a escrever. Durante três ou quatro meses escrevi dez horas por dia. Quando cheguei ao fim desse período pareceu-me um grande absurdo voltar a mandar currículos na área da economia.

Assumiu-se como escritor.

Sim. E fui arranjar empregos só para desenrascar, empregos precários. Vivi meio ano na Holanda porque queria sair daqui um pouco. Trabalhei numa fábrica, para juntar dinheiro e ter seis meses livres para escrever. Por isso, para mim, ficar desempregado foi fantástico.

Toda a ficção parte da experiência do autor. Até que ponto partiu de si para a construção do Daniel? A sua experiência de desemprego não é a da personagem, mas é pai, é casado, tem a mesma idade.

A minha experiência de desemprego não se relaciona com a dele.

Foi positiva. Mas ajudou a perceber o que é o desemprego hoje?

Isso é uma pergunta complicada.

O seu romance tem uma leitura que é: há a crise, a pessoa fica desempregada e tudo pode correr mal. A mensagem final não é essa, ele reencontra o amor, as pessoas.

É uma mensagem de esperança e de solidariedade.

Mas tem uma forte crítica à centralidade do emprego para a definição da identidade das pessoas. As pessoas são aquilo em que trabalham. O Daniel de repente fica sem emprego e o mundo foge.

Exactamente. Isso, para mim, era uma questão muito importante. Eu não me relaciono com a personagem porque sempre estive muito seguro das minhas opções. O Daniel começa a colocar tudo em causa. E isso é o que me interessava na personagem, alguém que coloca tudo em causa: os seus ideais, os seus planos, a sua relação com o mundo e com os outros. Era uma coisa importante a definir com este romance: hoje em dia o emprego define-nos. Nós conhecemos outra pessoa e a primeira coisa que dizemos sobre nós próprios é a nossa ocupação. Antes de falarmos da terra de onde vimos, de dizermos se somos casados, quem são os nossos pais, os nossos interesses. E interessava-me muito saber o que alguém sem essa identidade faz, como se move no nosso mundo contemporâneo.

É quase impossível.

Perdemos tudo. Não sabemos quem somos. Não sabemos estar ao pé do outro.

Central no seu livro é a crítica à sociedade de consumo em que o capitalismo se transformou. Há a crise e o desemprego, mas há também os centros comerciais, as empresas que jogam com a vida dos empregados... O Vasco rouba telemóvel e consola e depois vende o telemóvel para comprar outro, o Ávila vai ao hipermercado só para encher o carro e simular que compra e assim sentir-se normal. Ser normal hoje em dia é mesmo consumir?

Fala-se muito que vivemos acima das nossas possibilidades, não sei se é verdade e no âmbito deste romance nunca me interessou aprofundar essa questão. Aquilo em que eu acredito é que andamos a viver acima das nossas necessidades. Nós não precisamos de tudo isto. Não precisamos de tudo o que temos nos armários da cozinha, de tudo o que temos nas gavetas da cómoda. Não precisamos do tipo de carros que conduzimos. É um exagero. Não estou a dizer que temos todos de levar uma vida absolutamente espartana. Longe disso. O que eu acho é que, por causa deste consumismo e destes bens materiais todos, perdemos enfoque naquilo que, para mim, são as questões mais importantes.

Quais?

Pensar. Hoje em dia nós não pensamos. E não nos relacionamos com os outros de uma forma profunda. Eu não estou a culpar, por exemplo, a Internet; podemos relacionar-nos de uma forma profunda através da Internet, há quem o faça.

No seu romance há um questionamento sobre o papel da Internet. O espaço virtual é apresentado como artificial, relativizando a importância das coisas.

A Internet é algo incrível que conseguimos enquanto humanidade. Só que está tudo demasiado disperso e no espaço da Internet não há nada que oriente, sobretudo os jovens, para coisas que os façam pensar, que os façam reflectir sobre eles próprios, sobre a vida, sobre o mundo, que os afaste do mero interesse superficial.

A Internet transforma-se numa forma de consumismo?

Num consumismo imediato e curto, por isso nunca nada é de facto aproveitado e gozado. Eu também falo por mim. Muitas vezes ando na Internet a navegar sem orientação.

No romance, em conversa com o amigo Almodôvar, Daniel faz um retrato cru do país, onde a mensagem política dos últimos 40 anos, que prometeu desenvolvimento e progresso, de repente acaba. O Portugal da esperança no progresso e no futuro melhor acabou?

Acredito que a esperança nunca acaba. É sobre isso que fala o livro. O ser humano, como muitos animais neste planeta, tem essa coisa do instinto de sobrevivência. Mas depois tem algo mais, que é a esperança. Porque nós temos a noção da passagem do tempo, e mais especificamente temos a noção de futuro.

Temos projecto de futuro?

Pelo menos acreditamos que poderá haver projecto de futuro. Para além de termos uma necessidade incrível de saber o que vai acontecer no minuto seguinte, queremos acreditar que o minuto seguinte poderá ser melhor do que este. A maior parte das pessoas neste planeta é assim. Há pessoas que entram em ruptura e depois não sabem continuar. Mas não andamos todos a dar tiros na cabeça e há pessoas que têm vidas muito difíceis e que conseguem continuar. E acredito que conseguem continuar porque têm esperança de que o futuro poderá ser diferente do dia de hoje. Em Portugal continuamos a ter essa esperança. Somos demasiado apáticos, demasiado preguiçosos para buscar a mudança.

Devia haver mais participação cívica e política?

Devia haver participação cívica! Não era haver mais, era haver alguma! Espanta-me como ainda não fizemos o mesmo que fizeram no Egipto e na Turquia, o mesmo que estão a fazer no Brasil. Não sei se uma revolta ou uma revolução é o caminho indicado para resolver isto. A mim espanta-me como é que não acontece alguma coisa. Espanta-me esta comodidade.

Passividade. A complacência com os maus-tratos.

Exactamente. Desde que assinámos o acordo com a troika, há dois anos, eu estou à espera, a cada novo anúncio de medidas, a cada nova conferência de imprensa do Governo, que a resposta seja uma bomba qualquer — bomba em sentido figurado, claro. E nunca acontece nada.

Uma das coisas que o seu livro retrata é aquilo a que Zygmunt Bauman chama a “Sociedade Líquida”, que é a alteração da relação entre o indivíduo e a sociedade, acelerando o rompimento da ligação às estruturas tradicionais como a escola e a família. Embora, no livro, não haja ruptura com a família. Mas há uma estrutura tradicional nas sociedades europeias que está ausente do seu livro: os partidos políticos. Mesmo a personagem com perfil mais politizado, a Flor, desiste. É um desistir seu do que pode ser a participação política?

Não é que eu quisesse que a personagem principal fosse um retrato absolutamente fiel da realidade portuguesa, mas a verdade é que em Portugal a maior parte das pessoas não tem essa participação política. Ele até se questiona sobre o estado das coisas. Mas, para mim, faz sentido que não a tenha, porque a maior parte de nós também não tem. Eu nunca quis que este livro fosse sobre a crise e sobre o estado em que Portugal está. Queria escrever sobre um homem em crise.

Mas num país em crise.

Numa situação em crise, mas podia ter escrito uma história passada na Idade Média. Quis que houvesse uma identificação da parte do leitor o mais imediata e o mais profunda possível. Melhor do que a situação actual não podia haver. Mas como eu não queria falar sobre a crise, não queria estar a falar sobre os partidos e a tentar discernir quem é que teve culpa da situação, quem é que poderá fazer alguma coisa. Interessava-me falar das questões maiores.

E os partidos como procura de uma solução, de um sentido para as coisas tão aparentemente sem sentido retratadas no seu livro? Índice Médio de Felicidade tem momentos de absoluto non-sense, mas que são retratos da vida actual.

Não acho que o sistema partidário que temos seja muito útil. Os partidos estão demasiado virados para si próprios, são demasiado iguais. Não encontro grande vantagem em escolher um partido ou outro. Acho, sim, que as pessoas deviam ser mais activas civicamente e que devia haver movimentos de cidadãos que tivessem de alguma forma o poder de influenciar os partidos. Porque este sistema de poder é demasiado igual há décadas.

O livro coloca com acuidade como a falta de perspectivas empurra as novas gerações para o vazio. Isso é retratado na figura do Vasco, da Flor e do Mateus. Mas, na reviravolta final, uma das formas que a mensagem de esperança assume é precisamente o amor entre o Vasco e a Flor, que os redime, enquanto o Mateus volta a ser o filho-criança. Até que ponto esta mudança corresponde à sua espectativa de que o vazio criado à juventude de hoje possa ser também redimido?

A adolescência é um tema que me interessa muito, cada vez mais. Já o meu romance anterior [Deixem Falar as Pedras] era escrito na voz de um adolescente. Para mim, a adolescência é um período de grande descoberta, em que uma pessoa está a tentar perceber o que pode fazer com ela própria, como se pode mover no mundo, quais são os seus valores, que valores são mais interessantes, o que é que quer do futuro. E faz muitas asneiras, porque faz parte exceder os limites, quando estamos a tentar descobri-los. Isso interessa-me muito.

Mas não tem nenhum pudor em retratar as situações-limite.

As situações existem. Não me faz confusão nenhuma. Os miúdos dizem asneiras. Os miúdos são maus às vezes. E na sua maioria as situações que eu coloquei no livro com adolescentes são de facto situações reais que eu li em jornais.

Como se as nossas crianças lindas fossem capazes das coisas mais bárbaras, como bater num velho.

Porque isso é outro tabu! Não são só os miúdos de classes pobres e dos subúrbios, marginais. São miúdos normais de classe média, aparentemente bonzinhos. Eu lembro-me de ter amigos que faziam coisas muito bárbaras.

Ao longo da trama várias vezes surge o relativismo ético. A ideia a certa altura é de que a ética é uma coisa para quem está de barriga cheia. Ou seja, não é a ocasião que faz o ladrão, mas a circunstância que conduz ao crime. É possível quem está em necessidade resvalar nos limites que pensava que nunca iria ultrapassar. A sua crítica é tão forte e tão violenta, não teme que haja pessoas que vão pensar que isto não é real?

Isto é tudo possível. Dou um exemplo. Eu já tinha esta personagem na cabeça antes de começar a escrever. Não sabia exactamente o que ia fazer com ela, mas sabia que ela ia perder o emprego e a casa. E sempre pensei que a seguir a perder a casa ia viver para o carro. Parecia-me uma coisa bastante óbvia. Não há mais nenhum sítio, e ele não quer ir pedir ajuda. Depois um dia vi um programa da Oprah Winfrey sobre pessoas que vivem nos escritórios onde são empregados ou de que são donos, às vezes casais com filhos. Aprofundei o assunto. Nos Estados Unidos há centenas ou milhares de pessoas nesta situação. Portanto, não é nada ficção, estas coisas existem. Os miúdos que batem em sem-abrigo, sobretudo em sem-abrigo alcoolizados... há vídeos na Internet. Tenho de admitir que infelizmente não sou tão criativo.

O seu retrato da sociedade leva a pensar que a ética social e o respeito pelo outro afinal não existem.

Eu gosto muito do absurdo, a maior parte dos meus livros vai ao encontro do absurdo e a verdade é que esta época que nós vivemos leva-nos a situações muito absurdas para aquilo a que estávamos habituados há 20 ou 30 anos. E a verdade é que há 20 ou 30 anos vivíamos outras situações absurdas. Antes de querer fazer uma crítica, a mim fascina-me como é que o ser humano pode ser empurrado para estas situações e de alguma forma torná-las normais, banalizá-las.

O seu Daniel no fundo é um conservador. Ele procura até ao limite preservar o mito da família, o mito do seu papel de pai, a ética social, a amizade. No momento em que o mundo desaba, o David Machado cria uma personagem que quer agarrar os cacos que restam desse mundo antigo?

Não. O Daniel é alguém que está muito zangado com o mundo, com as pessoas à sua volta e consigo próprio, porque ele não consegue desistir. Os outros estão a desistir e ele não consegue, por causa das outras pessoas. Ele não consegue desistir porque tem de ajudar o filho do amigo. Ele não consegue desistir porque tem um amigo que não sai de casa há mais de dez anos. Ele não consegue desistir porque tem a mulher e os filhos longe e gosta deles. A personagem do Daniel acaba por dizer que nós só seremos felizes se os outros à nossa volta forem felizes. Não há forma de seguirmos sozinhos.

A mensagem do livro é de esperança, associada ao amor aos outros e à solidariedade.

De amor, sim. E de solidariedade porque nós precisamos dos outros: se não ajudarmos os outros eles não podem estar connosco, e se eles não estiverem connosco nós não queremos seguir em frente. Claro que há sempre excepções, mas alguém quer continuar a vida sozinho? Deixar tudo para trás e seguir? Nós queremos ter os outros ao pé de nós. De alguma forma só descobri isto depois de escrever o livro, mas vai muito ao encontro do que são as novas teorias da Economia da Felicidade, que agora está um pouco na moda. Temos andado muito preocupados com a felicidade do individuo, cada um de nós quer ter o máximo de prazer da vida; na verdade, temos de pensar em sermos felizes enquanto sociedade.

O seu livro é uma profunda crítica da sociedade construída pelo neoliberalismo, do individualismo, do pós-modernismo. Tinha essa intenção política?

Não tinha. Mesmo. Essa crítica surge por causa do que disse sobre os absurdos. Há situações que para mim são um absurdo. É um absurdo nós não conseguirmos deixar de ver televisão. É um absurdo não conseguirmos deixar o telemóvel em casa. É um absurdo pagarmos 10, 20, 30 mil euros por um carro.

E o que fazemos para conseguir essas coisas...

O que perdemos, não é? E o tempo que perdemos depois dedicados ao carro, ao telemóvel, à Internet, à televisão. Tempo que eu acho fundamental para outras coisas.

Perdemos índice médio de felicidade.

Exactamente. Cheguei de férias e estive três semanas sem ver nada na televisão uma única vez. E a verdade é que li mais livros do que é habitual. Brinquei mais com os meus filhos do que é habitual. E isso contribuiu para o meu índice de felicidade. É claro que, de vez em quando, estar sentado em frente à televisão a mudar de canal relaxa muito, abstrai-nos dos problemas do dia-a-dia. Mas nós precisamos mesmo disso, de nos abstrairmos dos problemas do dia-a-dia? Se calhar não precisamos tanto assim. Ler um bom livro, brincar com os meus filhos, pensar às vezes não acontece porque estou a fazer coisas muito superficiais. Eu estou a fazer estas criticas mas estou metido no meio disto, não sou mais nem melhor do que ninguém. Mas acho que perdemos um bocado o Norte em relação às nossas prioridades.

Em relação ao que é a felicidade?

Sim. Em relação àquilo que nos faz bem. Àquilo que queremos para a nossa vida. Está tudo demasiado formatado. Aos 15 anos já sabemos que vamos para a universidade, quando podemos não ir. Já sabemos que vamos casar, quando podemos não casar. Que vamos ter filhos e que vamos comprar uma casa. E porque havemos de comprar uma casa? Porque não viver num barco ou numa autocaravana ou num carro? Devíamos questionar mais.

Sugerir correcção
Comentar