Amélia e Filipe ou a beleza musical das árvores a andar

A parceria de Amélia Muge com Filipe Raposo em Com o Passo das Árvores foi uma aposta inteligentemente ganha, uma jóia a juntar à já vasta colecção destes anos na Culturgest.

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Com o Passo das Árvores, de Amélia Muge e Filipe Raposo DR

Ela prometera um ramificar de ideias, palavras e música a partir da metáfora das árvores, dos seus pés, do seu andar mesmo paradas, dos ramos, folhas, frutos, raízes que na sua longa vida se expandem, continuamente. Assim é, ou pode ser, também a cultura que não se deixa estiolar, que ramifica, que inspira novos ares e cresce. Prometeu e cumpriu. Com o Passo das Árvores, o espectáculo que Amélia Muge idealizou com Filipe Raposo para o Grande Auditório da Culturgest na noite de 8 de Junho (a convite de Miguel Lobo Antunes e integrado na programação que assinala a sua despedida de programador daquela sala) foi a concretização, belíssima, dessa premissa frondosa de musicalidades (sons, cores, imagens, palavras) e significâncias.

“Será uma canção apenas um tempo de estar que se vai ramificando?”, perguntava Amélia num dos textos que escreveu para a folha de sala, antes de descrever passo a passo o alinhamento. A resposta deram-na ambos, Amélia e Filipe, no encadeamento de canções (com letra dela, mas também de Camões, Amália, Grabato Dias, Fernando Pessoa, Natália Correia, Laurie Anderson, Drummond de Andrade, José Afonso, William Blake) e excertos de poemas (Herberto Helder, Grabato Dias, Fernando Pessoa, Ramos Rosa), num cenário onde se iluminavam émulos de livros abertos de onde saíam figuras tridimensionais, a rivalizar com outras máscaras e figuras de inspiração popular perto deles, floresta de livros onde as letras se transfiguraram em cores ao compasso dos acordes. E ouvimos Luiz de Camões a cantar os olhos de Helena, Amália a atirar um ai à Lua, Drummond no seu amor em viagem. E Amélia a recordar sons antigos: como Moçambique (onde ela nasceu, apesar de ser uma cantora portuguesa de fundadas raízes), nesse Chove muito, chove tanto/ Mamana wa bebe, que ela compôs com a sua irmã Teresa Muge; José Afonso, nesse muito belo De sal de linguagem feita, com a excelente encenação sonora que ela e António José Martins fizeram para o disco colectivo REintervenção; ou as palavras de Blake em Echoing green, combinadas com as Variações Goldberg de Bach no piano ágil e expressivo de Filipe Raposo – que, a solo, nos deu a ouvir Ebony woods, um dos temas do seu segundo disco que mais se relaciona com a metáfora usada no espectáculo: a floresta de ébano das teclas pretas do piano, memória de infância e também do tempo em que ele se perdia nesse “bosque” ao estudar improvisação.

E reouvimos com prazer a espreguiçante Maria Gata, os saberes d’O folar da avó Tina, a beleza sempre nova de Quem à janela. E abrimos ainda mais os ouvidos para a colagem sincopada e inquietante de A garra do macaco (outra encenação sonora a partir de um tema de Laurie Anderson, traduzido por João Lisboa), para o olhar crítico de Vende-se Faro, para as novidades absolutas de Uma ilha com o nome de Utopia (que há-de integrar o sucessor de Periplus, um disco em que Amélia trabalha agora, também de parceria com o compositor grego Michales Loukovikas e a estrear em Novembro sob o nome de Archipelagos) ou De escuro o céu vestimos, um bonito inédito composto com Filipe Raposo para este concerto.

Encerrado com Sinais da noite nos dias, o espectáculo teve ainda, como único encore (numa sala imerecidamente meia), Havemos de nos ver outra vez, composição de Teresa Muge que Amélia canta e tem selado em diversos concertos uma promessa (cumprida, por muitos) de um futuro reencontro. Com o Passo das Árvores, pese embora a escassez de público, que outras razões que não a qualidade musical e poética explicarão, comprovou mais uma vez a excelência do trabalho (autoral, musical, gráfico, criativo) de Amélia Muge, bem como as capacidades crescentes, no piano, de Filipe Raposo, parceiro acertado nesta aventura a que, em boa hora, a Culturgest deu acolhimento. Pena a ausência de gravações, de imagens, de registos que o comprovem. Só a memória dos que ali estiveram e poderão recordar-se, com justificado prazer, de uma inspiradíssima noite e de um espectáculo inteligente e múltiplo.

Com o Passo das Árvores contou com Amélia Muge (voz, braguesa, percussão e imagem) e Filipe Raposo (piano preparado, acordeão), mas também com cuidada projecção de imagens, captação sonora e interacção instrumental de António José Martins. Os ambientes luminosos e cenários foram de Manuel Mendonça e a produção foi da Culturgest com a UGURU.

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