A Tribe Called Quest e a idade dourada do hip-hop

Há 25 anos abriram o hip-hop a novos vocabulários, timbres, ritmos e texturas com o magnífico álbum de estreia agora reeditado. Phife Dawg, um dos fundadores dos A Tribe Called Quest, diz que era tudo uma questão de cadência e fluidez.

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Phife Dawg cresceu com Q-Tip, em Queens, um dos bairros de Nova Iorque. Mais tarde introduziu Jarobi e Q-Tip trouxe para o grupo Ali Shaheed: A Tribe Called Quest

É uma nova década / Os Native Tongues estão prontos para desenvolver a gíria habitual / O ritmo do costume”, ouve-se no início de um dos melhores temas – Rhythm (Devoted to the art of moving butts)do álbum de estreia dos A Tribe Called Quest, People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm. Uma obra que agora é reeditada, 25 anos depois da edição original, com nova masterização efectuada pelo engenheiro de som que participou nessas gravações, Bob Power.

Estávamos em 1990, numa nova década, e os Native Tongues, o colectivo que ligava os A Tribe Called Quest, De La Soul e Jungle Brothers, colonizava a cena hip-hop dos anos vindouros, edificando-se como alternativa às correntes mais reivindicativas e identitárias do rap, personificadas pelos Public Enemy, ou às mais conotadas com o submundo transgressivo, como os N.W.A.

“No fim de contas o que fizemos foi abandonar uma certa postura mais dura que havia sido construída no rap e focámo-nos numa filosofia mais transversal e essencialmente numa música mais melódica”, diz-nos Malik Taylor, mais conhecido por Phife Dawg, membro fundador do grupo ao lado de Jonathan Davis, ou seja Q-Tip, na companhia de Ali Shaheed Muhammad e Jarobi White.

Em parte, foi isso. Mas essa é apenas a explicação parcial. Olhando para a história do hip-hop é inegável que os A Tribe Called Quest são um dos grupos mais reverenciados da história e por razões válidas. Em primeiro lugar porque a sua sonoridade é facilmente reconhecível, mistura de ritmos lânguidos de hip-hop, com elementos jazzísticos e letras muitas vezes divertidas, num todo que privilegiava a música pela música, atitude lúdica, longe da postura combativa na altura vigente.

Quando perguntamos a Phife Dawg, de poucas palavras, como é que recorda o início do projecto, em 1988, diz-nos: “éramos apenas um grupo de miúdos, como tantos outros, que gostavam de música e sonhavam viver dela, embora desde o princípio existisse a ideia de não sermos como todos os outros.”

Escancarar a porta
Phife Dawg cresceu com Q-Tip, em Queens, um dos bairros de Nova Iorque. Mais tarde Phife introduziu Jarobi e Q-Tip trouxe para o grupo Ali Shaheed. Frequentavam a mesma escola, tal como os Jungle Brothers, que acabaram por baptizar o quarteto. Em 1989 assinaram pela Jive e um ano depois saiu o álbum.

Antes já Q-Tip participara noutra das obras-primas da época – o álbum inaugural dos De La Soul, 3 Feet High and Rising, saído em 1989. Esse triunvirato (De La Soul, Jungle Brothers e A Tribe Called Quest) haveria de escancarar a porta para novas abordagens ao hip-hop e nos tempos que seguiram, dos Dream Warriors aos Digable Planets, passando pelos Gang Starr de Guru e DJ Premier outros lhe seguiriam o rasto, contribuindo para uma das épocas mais estimulantes do género.

“Quando os De La Soul estavam a trabalhar no seu primeiro disco, nós andávamos por lá e quando os Jungle Brothers estavam a gravar acontecia o mesmo. E quando estávamos nós a produzir o nosso disco eram eles que apareciam. Conhecíamos-mos todos bem. Éramos como uma grande família”, resume Phife Dawg.

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De todos foram os A Tribe Called Quest que conseguiram unir, de forma mais equilibrada, sucesso comercial e impulso criativo, principalmente quando se ouve os três primeiros álbuns – para além do álbum agora reeditado, estão nesse lote The Low End Theory (1991) e Midnight Marauders (1993). “Não creio que, nessa altura, pensássemos muito em termos de êxito”, reflecte Phife Dawg. “Claro que queríamos ter sucesso, mas estávamos mais interessados na produção, na cadência e na fluidez da nossa música. Era isso que nos motivava. Muitas vezes perguntam-me se éramos uma resposta aos Public Enemy ou esse tipo de coisas. Nem pensar! Queríamos apenas ganhar o nosso espaço. É isso.”

Na procura dessa posição própria por vezes fica a ideia que, eles e os De La Soul, acabaram por criar quase um lugar idílico, longe da realidade social mais convulsa. Na altura existiu até quem os criticasse por isso. “Isso não tinha nem pés nem cabeça, estávamos apenas preocupados com a nossa arte, e ela tanto provinha da rua, como da nossa mente, e tentávamos apenas ter a nossa estética como Prince ou outros antes de nós.”

Nos créditos do disco, a produção e as letras, são atribuídas ao grupo, mas Phife Dawg sabe que não é bem assim. “Eu não tinha grande coisa a ver com a produção, isso era a área de Q-Tip. Claro que todos dizíamos que sim ou não, ou seja dávamos a nossa opinião, mas ele era o homem que dominava esse território.”  

Os fragmentos sonoros que escolhiam incorporar na música também não eram os mais convencionais da época. Eram eclécticos, indo mais longe do que apenas reciclar elementos de soul, sendo o exemplo mais conhecido o recurso a um fracção do clássico Walk on the wild side de Lou Reed, nomeadamente a linha de baixo, misturada com a batida de Spinning wheel de Lonnie Smith, resultado daí Can i kick it?, um dos singles retirados do álbum, com I left my wallet in El Segundo e Bonita applebum.

Segundo ele, houve problemas legais com a utilização do sample de Lou Reed, porque a editora Jive não terá cumprido com as suas obrigações, e o quarteto nunca recebeu os royalties e os direitos de publicação da canção: “O Lou Reed autorizou a utilização do sample, mas apenas na condição de receber esse dinheiro”, diz.

Não era apenas na reconstrução, a partir de fragmentos sonoros, que eram singulares, era também na combinação que geravam um léxico particular. “Ouvíamos outras músicas, em parte por influência dos nossos pais, e estávamos atentos ao que se passava, talvez até mais do que os jovens de hoje”, afirma Phife, que parece ter um olhar crítico sobre a actualidade musical nos Estados Unidos, apesar de nas duas últimas décadas a cultura urbana personificada pelo hip-hop e R&B se ter imposto de forma hegemónica, contaminando o globo. “É verdade”, começa por concordar, “e sinto algum orgulho em ter contribuído para isso, mas quando olho à volta vejo quase toda a gente a fazer o mesmo, sem grande rasgo. Parece-me que há muita preguiça.”

“Mas há excepções”, apressa-se a dizer, talvez por se ter recordado que há três remisturas na edição especial agora revelada, da autoria de nomes bem conhecidos como Pharrell Williams, J. Cole e CeeLo Green. “Quer dizer J. Cole ou Kendrick Lamar, por exemplo, são excelentes rappers e o que têm a dizer não se resume a um grupo de mulheres à sua volta, percebe?”  

Os A Tribe Called Quest abriram o hip-hop a novos vocabulários, timbres, ritmos e texturas, acabando por influenciar alguns dos nomes mais influentes das gerações vindouras (Common, D’ Angelo, Mos Def, Erykah Badu ou Kanye West) com esse álbum inaugural e também com os que se seguiram. Antes de lançarem o quinto álbum, The Love Movement (1988), o grupo anunciou que iria ser o seu último registo e que se iriam separar. Cada um dos seus membros seguiu carreiras a solo, com variações de sucesso, mas o apelo do grupo revelou-se mais forte ao longo dos tempos, acabando por regressar ao activo diversas vezes – em 2013, por exemplo, abriram a digressão Yeezus de Kanye West.

E há quinze dias, no programa da TV americana, Jimmy Fallon Show, voltaram a fazê-lo, cantando Can i kick it?, na companhia dos The Roots, no âmbito do relançamento do álbum. Aliás na ocasião, Questlove, o carismático líder dos The Roots referiu-se a eles como um dos grupos mais influentes de sempre do hip-hop.

“Nunca tinha escutado nada assim, quando os ouvi pela primeira vez, tinham estilo, eram divertidos, jazzísticos e com soul em simultâneo, e ao mesmo tempo eram conscientes, sem serem demasiado auto-conscientes. E depois havia as letras luminosas mas profundas e aquela música, com todos nós a perceber que a colecção de discos dos nossos pais era outra vez pertinente.”

É isso. Mas este é muito mais do que um relançamento nostálgico. Vale a pena ouvir os A Tribe Called Quest desse período inaugural não pelo que eram, mas pelo que continuam a representar.

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