A tentação de contar

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Lídia Jorge: uma grande romancista que também escreve contos FOTO: ENRIC VIVES-RUBIO

Há grandes narradores que são igualmente férteis e magníficos no romance e no conto. Será o caso de Machado de Assis e o de Vladimir Nabokov (para darmos dois exemplos altos). Outros, tendo escrito proficuamente em diversos géneros, são fundamentalmente contistas. Creio ser este o caso, mais próximo, de Urbano Tavares Rodrigues. Sobre Lídia Jorge (n. 1946) poder-se-á dizer que se trata de uma grande romancista que também escreve contos.

A autora de O Dia dos Prodígios (romance de estreia, em 1980) acaba de publicar O Amor em Lobito Bay, a sua quarta colectânea de contos. São nove as narrativas curtas agora coligidas. Sendo usual, seria talvez tentador pormo-nos à procura de um “fio condutor” que justificasse, por assim dizer, a coligação em volume. No caso vertente, não existe, propriamente, um elemento comum agregador de todos os contos. Nem tal nos parece necessário, aliás.

Como quer que seja, os três primeiros são revisitações do mundo da infância, centrando-se cada um deles num episódio fundador e iniciático. No conto que empresta o título ao volume, e que é simultaneamente simbólico e realista, denso e comovido, um professor fala aos alunos de um episódio e de uma “imagem fundadora” da sua vida, quando os pais “não puderem evitar da História o que é da História, nem da espécie o que é da espécie”. A acção decorre na cidade do Lobito, no pós-25 de Abril de 1974, na altura ou nas vésperas da independência angolana, quando “a vida mudou inesperadamente”, tinha o professor nove anos. A particular vibração emocional que permeia este conto advém do modo como funde a inocente violência da infância e a indiferente violência da História, a culpa individual e a colectiva. Um perfeito “conto de formação” (se tal subgénero existir).

De violências e culpas, individuais e colectivas, e de má-consciência trata também o segundo conto, Overbooking, que presentifica um episódio traumático da infância do narrador, que logo no início nos avisa que tem “uma coisa má para contar”. Toda a tensão do conto será construída sobre a antecipação, várias vezes repetida, dessa “coisa má” que, aliás, “começou por uma coisa boa”. Trata-se da confissão de um crime ocorrido vinte anos antes (uma violação e um assassínio perpetrados por um grupo de jovens). Diz o narrador: “[…] sou um homem bom e, no entanto, tenho para contar esta coisa má. Esta coisa má quer sobretudo ser contada quando estou longe do lugar, quer ser contada a desconhecidos, uma tentação, a tentação de contar. A quem contar?” O conto responde à pergunta. Em O Tempo do Esplendor, o terceiro conto, intensamente nostálgico e intimista, a narradora regressa à infância: “Era o tempo das grandes casas para três pessoas, o tempo das criadas, […] o tempo dos jardins domésticos com lagos e peixes vermelhos, o tempo dos professores de Latim como era o meu pai.” A violência, aqui, é a das expectativas frustradas e a da passagem do tempo.

Três dos contos – Um Rio Chamado Mulher, Novo Mundo e Dama Polaca Voando em Limusine Preta – tomam por cenário os Estados Unidos da América. O terceiro destes é um esforçado exercício demonstrativo de como se pode criar uma expectativa (relativamente) intimidante a partir de quase nada. Sobre “Novo Mundo” poderá dizer-se que é o conto mais surpreendente do volume. Talvez por começar por ser o menos promissor. A verdade é que cabe quase tudo nesta curta narrativa paródica: invenção, suspense, humor. E frases como esta: “As árvores despidas acenavam galhos escuros onde todas as tuas ideias eram enforcadas antes de resultarem em alguma coisa útil.”

O último conto desta colectânea intitula-se, talvez prosaicamente, O Poeta Inglês. Poderá parecer excêntrico a quem insistir em procurar temas e motivos comuns às restantes narrativas. É o mais literato e, não obstante, o mais amável do volume. Por causa da leveza e da ironia. E também por ser aquele que menos (ou em nada) depende de um efeito de “suspense” que, em alguns dos outro, é procurado e obtido com caprichoso artifício. A acção situa-se em França, na “doce Aquitânia dos vinhos”: “Lá fora, as rosas desabrochavam naquele final de Março, e o jardim era viçoso, as estátuas eram de mármore.” Congrega cinco escritores num “hotel de charme rente ao mar”. O resultado só pode ser risível. E no entanto, “em face do essencial, o que são as línguas senão vestidos curtos?”

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