A falsa equiparação entre um Estado e um movimento terrorista

Netanyahu equiparou uma eventual decisão do TPI de emitir um mandado de captura em seu nome a uma perseguição ao próprio Estado de Israel, num tique autoritário à Luís XIV: “L’État c’est moi”.

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Imagine que, de uma hora para outra, o seu mundo, a sua realidade, muda de forma drástica e que você é completamente impotente para alterar a sua situação, podendo apenas esperar e torcer pelo menos mau. Imagine perder tudo. Sua casa, suas roupas, carro, fotografias, memórias, esperança. Imagine perder seus amigos, seus vizinhos, seus parentes, seus filhos. Imagine dormir e acordar sem saber se será a última vez. Imagine se despedir dos seus filhos todas as noites, sem saber se terá oportunidade de viver com eles mais um amanhã. Tudo isto – e muito, muito mais – está a acontecer em Gaza há mais de sete meses.

Na semana que passou, muito ouvimos sobre a decisão do procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) de solicitar mandados de captura para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, assim como para um seu ministro, Yoav Gallant, ao mesmo tempo em que pedia o mesmo para três líderes do movimento armado palestiniano Hamas, que perpetrou os ataques terroristas em solo israelita no dia 7 de outubro. Netanyahu equiparou uma eventual decisão neste sentido por parte do TPI a uma perseguição ao próprio Estado de Israel, num tique autoritário à Luís XIV, cuja célebre frase a si atribuída “L’État c’est moi”, o Estado sou eu, ficou marcada na história como símbolo do absolutismo. Os discursos de Netanyahu mostram muito bem o que este líder pensa da sua própria figura, tentando de forma covarde imputar os seus crimes horrendos a toda uma nação, numa vergonhosa tentativa de permanência no poder que contribui para o isolamento do seu país e para o abominável e indefensável crescimento do antissemitismo num mundo cada vez mais polarizado e mediatizado, que tende a promover leituras simples e binárias de situações complexas.

Mas Netanyahu não foi o único a fazer esta leitura. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, consideraram “errado” e moralmente falacioso que o TPI colocasse na mesma balança um Estado democrático liberal e líderes de um movimento terrorista. Mas eles estão enganados. A verdade é que o TPI não julga Estados. Isto quem faz é o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) que está a analisar a acusação movida contra Israel pela África do Sul de crime de genocídio na Faixa de Gaza e que, também nesta semana que passou, foi mais uma vez foco das atenções por ter exigido que Israel suspendesse imediatamente as operações em Rafah que representam uma ameaça às vidas de milhões de inocentes. O que o TPI está a fazer é a responsabilizar nominalmente todos aqueles que cometem atrocidades e crimes de guerra e contra a humanidade, assim como fez com o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, no ano passado, tendo recebido aplausos em uníssono dos países ocidentais.

Mas pode um Estado de direito democrático e defensor de valores liberais ser equiparado a um movimento terrorista? Não, não pode. Um Estado tem obrigações – e direitos face ao direito internacional que nenhum movimento terrorista poderia ter, pela sua própria natureza. Um Estado democrático de direito não pode tudo. Há limites políticos, jurídicos e sobretudo morais que se impõem a quem tem o privilégio de gozar do estatuto de Estado que não poderiam ser impostos àqueles que, pelo motivo que seja, fazem valer tudo na defesa dos seus objetivos. Para um Estado ser um Estado, não pode valer tudo. Dizia o filósofo Jean-Jacques Rousseau que a legitimidade do poder dos Estados emerge de um contrato social entre os indivíduos e essas unidades políticas, que são uma construção social em prol da segurança, da paz e da prosperidade de uma civilização. O objetivo primeiro dos Estados é a segurança dos indivíduos. O Estado não é um fim em si mesmo, é um meio.

A evolução de uma noção parcelar e sectária das identidades nacionais e espaços de pertença social, cultural, política, étnica, religiosa, entre outras, levou a que os Estado e as fronteiras se tornassem espaços potencialmente fechados em si mesmos e, assim, valeria tudo na defesa dos seus ditos interesses. Com este entendimento, vivenciamos duas guerras mundiais no século XX, uma delas com especiais contornos de crueldade, quando mais de seis milhões de indivíduos de um mesmo grupo foram massacrados, torturados e, por fim, exterminados numa máquina de matar cujas consequências chamamos de Holocausto ou Shoá. E a partir daí, em defesa de um povo que há muito vinha sendo alvo de perseguições injustas, incompreensíveis e sobretudo desumanas, e, igualmente, em defesa da nossa própria humanidade, o sistema internacional se repensa e se reconstitui, com a elaboração de um arcabouço jurídico de direito internacional que parte da primazia do universalismo como forma de superar fronteiras artificiais que só protegem aqueles que têm a sorte de lá estar.

Foi assim que nasceram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as Convenções de Genebra e outros tantos documentos que visam nos garantir a todos proteção, onde quer que estejamos, independentemente de onde tenhamos nascido. É utópico, é verdade. E há muito que se diga porque, como argumentou Hannah Arendt, mulher judia e a dada altura apátrida, a ausência de um Estado que possa conferir proteção e a aplicação de determinados direitos coloca, até hoje, em causa a ideia de universalidade destes mesmos direitos (os refugiados são um excelente exemplo disto). Ainda assim, estes documentos passaram a ser a base moral, intelectual e humana da nossa organização enquanto sociedade internacional de nações soberanas, e nos servem como baliza do que pretendemos que seja a nossa atuação.

Este domingo à noite as Forças de Defesa Israelitas (IDF) bombardearam um campo de refugiados em Gaza onde mais de 45 pessoas (no momento em que escrevo) foram dadas como mortas, queimadas vivas, e mais outras dezenas ficaram gravemente feridas. Circulam vídeos de crianças – crianças, que constituem mais de 50% da população de Gaza e nunca sequer puderam exercer direito de voto para escolher a liderança que seja – a agonizarem com queimaduras graves e sem medicamentos para as tratar. Eu não consigo parar de pensar que poderiam ser os meus filhos. Caro leitor, cara leitora, já pensaram que poderiam ser os vossos filhos?

O que o Hamas fez a 7 de outubro é injustificável. E, infelizmente, contribui para o exercício de apagamento da história que os líderes cada mais radicais de Israel tanto se esforçam para perpetuar. Porque embora seja óbvio que a ausência de um Estado, uma realidade que já dura há pelo menos três quartos de século para os palestinianos que vivem no que o direito internacional chama de Territórios Ocupados, é motivo de desproteção, falta de perspectivas e imensa vulnerabilidade, não há causa justa que possa ser utilizada para defender a chacina de homens e mulheres, crianças e idosos inocentes. Os fins não podem justificar os meios.

E assim eu volto ao título deste texto. É falsa, em todos os sentidos, a equiparação entre um Estado e um movimento terrorista. Não podemos sob nenhum pretexto aceitar que um Estado “como os nossos” torture crianças, mate à fome e à sede, bombardeie “casas” improvisadas em tendas precárias depois de destruir 80% dos tetos e paredes que existiam numa zona pobre, cercada e impotente. Não podemos assistir em direto o drama catastrófico de dois milhões de pessoas, um trauma e um medo existencial que eu não consigo imaginar quantas gerações vão ser necessárias para superar (já lá vão pelo menos três para o povo judeu e a força deste discurso ainda fornece justificação intelectual, moral e psicológica para o que estamos a ver). Não podemos acreditar, ou reproduzir, em argumentos falaciosos sobre direito de defesa e guerra existencial, que visam equiparar situações completamente desproporcionais e assimétricas, justificando a ação egoísta de alguns em nome da manipulação do medo de muitos.

Não se pode equiparar um Estado a um movimento terrorista. Repito este mantra na esperança de que o Estado (e, sobretudo, o povo já há muito farto desta liderança) de Israel me escute.

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