“Escrever sobre comida é jornalismo” – Uma newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media, publicada a 10 de Abril

Direito de resposta de Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, a newsletter publicada a 10 de Abril de 2024 na edição online do PÚBLICO.

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Bárbara Reis, sem que em nenhum momento tenha contactado a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), decidiu tomar posição sobre a atuação deste organismo independente de direito público e vincular-se a uma das partes num caso que decorre em tribunal e com isso tomou também partido num tema polémico e fraturante do fenómeno jornalístico atual, como são os conteúdos patrocinados "disfarçados" de jornalismo. Para legitimar a sua posição apresentou, na sua newsletter do passado dia 10 de Abril, uma aula sobre história do jornalismo que procura levar os leitores a deduzir que a entidade (co)reguladora da atividade jornalística anda a "perseguir" os jornalistas que escrevem sobre comida, porque certamente os membros da CCPJ se esqueceram desse princípio fundamental que é: "escrever sobre comida é jornalismo".

Não será preciso ir tão atrás no tempo, a Roma ao ano 59 a.C.. A CCPJ não se esquece de duas das maiores referências do jornalismo português: José Quitério e David Lopes Ramos. Profissionais que enobreceram o jornalismo escrevendo sobre gastronomia. Bastaria que todos os jornalistas que escrevem, sobretudo, para elogiar novos restaurantes, lojas, modas, compras e outros estilos de vida, seguissem os princípios deontológicos que orientaram a prática jornalística de José Quitério e David Lopes Ramos e não existia certamente nenhum problema com o chamado "lifestyle".

Estranhamos que Bárbara Reis, no afã de se alicerçar na história, tenha passado por cima de Voltaire e esquecido o primeiro dos conselhos que o filósofo deu aos jornalistas: "Pergunta-me como fazer para que essa revista agrade ao nosso século e à posteridade. A minha resposta é dupla: ser imparcial". Bárbara Reis escreveu que "a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista portuguesa está em guerra com a Time Out Portugal: acha que os 14 jornalistas da revista não são jornalistas e recusa renovar-lhes a carteira". Esta é uma afirmação falsa, difamatória e que afeta diretamente a imagem, o bom nome, boa fama e reputação da CCPJ. Entidade que analisa, caso a caso e a cada momento, todos os pedidos à luz dos princípios éticos que regem os organismos independentes de direito público. É, ainda, uma referência desprimorosa e ofensiva para os jornalistas legítimos representantes da CCPJ.

Em primeiro lugar, a CCPJ não está em "guerra" com ninguém e não se entende onde foi Bárbara buscar o estilo bélico da argumentação se o Livro de Estilo do jornal PÚBLICO, onde escreve e já foi Diretora, aconselha, no capítulo sobre o rigor da escrita: “clareza, simplicidade, exatidão e variedade caracterizam o estilo jornalístico de qualidade” e acrescenta o Livro de Estilo, citando Vicente Huidobro: “O adjetivo, quando não dá vida, mata.” Em segundo lugar, e este será até um problema maior, Bárbara Reis considera que a Comissão da Carteira “acha que os 14 jornalistas da revista não são jornalistas”. Ora acontece que Bárbara Reis assume esta conclusão sem nunca contactar a CCPJ para pedir esclarecimentos sobre o delicado tema em causa, ou seja, para respeitar esse princípio fundamental do jornalismo que é o do contraditório.

Em 2019, a CCPJ fez urna recomendação sobre conteúdos patrocinados que começa assim: “A CCPJ tem conhecimento, na sequência de vários pedidos de informação, da pressão a que muitos jornalistas, com carteira profissional, estão a ser sujeitos a produzir conteúdos patrocinados na forma de notícias, reportagens, entrevistas, e outros géneros jornalísticos”.

Na sequência desta recomendação foram ouvidos vários diretores de informação de órgãos de comunicação social nacionais. Abriram-se processos de contraordenação e foram indeferidos pedidos de renovação (ou atribuição) de carteiras profissionais a jornalistas (e a outros detentores de acreditações para a prática da atividade jornalística) de todo o tipo de publicações que a CCPJ considera visarem “predominantemente promover atividades, produtos, serviços ou entidades de natureza comercial ou industrial”. Não se visou direta e exclusivamente a revista Time Out, nem nunca a CCPJ teve intenção de divulgar publicamente este e outros casos que estão em tribunal. A divulgação pública, enviesada deste diferendo não é da responsabilidade da CCPJ.

Por outro lado, cumpre clarificar que dificilmente qualquer jornalista nos Estados Unidos da América, assim como no Reino Unido (dada a referência também feita a publicações inglesas), foram (ou são) alguma vez detentores de carteira profissional de jornalista emitida por um organismo regulador da atividade, simplesmente porque esta atividade não é, nem nunca foi, uma profissão regulada nesses países. Nomeadamente, nos termos é que o é em Portugal de acordo com a lei portuguesa em vigor.

Os conteúdos produzidos em outros países regem-se pelas normas locais e não pela lei portuguesa. Nestes estados os jornalistas não estão impedidos de produzirem nem publicar artigos de natureza promocional.

Pensamos que é um dever dos jornalistas combater todo o tipo de conteúdos que disfarçados de jornalismo mais não são do que a aplicação das modernas técnicas de marketing que visam criar identidade de marca, não com recurso à publicidade tradicional, bem identificada como sustenta a lei, mas com conteúdos promocionais disfarçados de peças jornalísticas.

Porque como refere e bem, Bárbara Reis, para os escribas dos estilos de vida, cujos conteúdos apenas mostram o lado positivo dos hotéis, lojas, restaurantes que reportam, o facto de “Não terem a carteira não mudará muito a sua vida”. Realmente para dar dicas “úteis” sobre “Os melhores bares em Lisboa” ou “Os melhores bares em rooftops em Lisboa” ou “Os melhores bares de vinho em Lisboa” ou “ X: A marca portuguesa que está a pôr os espanhóis loucos”, não é necessária a carteira profissional de jornalista.

Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista

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