Iniciativa Liberal e mobilidade social: será o IRS um fator de injustiça social?

Se Carlos Guimarães Pinto está preocupado com a desigualdade de oportunidades entre quem herda e quem não herda, poderia empenhar-se na defesa de um imposto sucessório em Portugal.

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Quem não é bafejado por uma herança volumosa ou não dispõe de património de algum tipo dependerá, em grande medida, do rendimento do seu trabalho, se quiser progredir na escada social. Poderá isto fazer com que o Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) seja injusto? Formalizemos o argumento:

  1. Quem não possuir património dependerá do seu trabalho como forma de subir na escada social;
  2. O respeito igual devido a todas as pessoas, por uma questão de justiça, exige "mobilidade social", ou seja, exige que as pessoas subam na escada social em relação à posição que ocupavam à nascença;
  3. 95% do rendimento declarado em IRS advém de trabalho (ou pensões);
  4. O IRS limita, portanto, a progressão social de quem depende do trabalho e dessa feita é injusto.

Este parece ser o argumento de uma intervenção de Carlos Guimarães Pinto a 24 de Abril de 2024 no hemiciclo. Será o IRS um fator de injustiça, como pretende a Iniciativa Liberal?

Neste texto sustentaremos que há razões para não nos preocuparmos com a mobilidade social em si mesma e que há princípios de justiça bem mais importantes cuja concretização depende do IRS.

Comecemos pelo primeiro ponto da nossa formalização. Se Carlos Guimarães Pinto está preocupado com a desigualdade de oportunidades entre quem herda e quem não herda, poderia empenhar-se na defesa de um imposto sucessório em Portugal. A concentração de 42% da riqueza em 5% da população portuguesa não é apenas atribuível à inexistência de um imposto sucessório, claro está. A Iniciativa Liberal poderia também propor um imposto anual sobre a riqueza e o fim da diferença entre a tributação de rendimentos do capital e do trabalho. Portugal é o terceiro país da OCDE com maior diferença entre uma coisa e outra.

Olhemos agora para o segundo ponto. Que razões temos para dar importância à mobilidade social? A seguinte resposta parece plausível: a mobilidade social interessa-nos porque a sua existência em maior ou menor grau diz-nos se a sociedade distribui oportunidades adequadamente. É difícil, porém, separar a distribuição de oportunidades dos efeitos da desigualdade de rendimentos. Mesmo um sistema universal de ensino igual para todos não consegue eliminar todas as vantagens de que dispõem as famílias com mais recursos relativamente às que têm menos. Talvez por isso haja muita evidência de que menos desigualdade de rendimentos conduz a mais mobilidade de rendimentos.

Imaginemos que não existia, contudo, esta feliz convergência entre o combate às desigualdades de rendimentos e a promoção da mobilidade social. Teríamos razões para privilegiar a promoção da mobilidade social? Poder-se-ia pensar que sim se a mobilidade social refletisse uma distribuição justa de oportunidades. Acaso temos razões para crer que a mobilidade social é sequer um bom indicador de igualdade de oportunidades em sociedade? Acreditamos que não.

O facto de uma pessoa oriunda de uma família de classe trabalhadora ter conseguido um cargo enquanto administradora executiva de uma empresa cotada em bolsa nada nos diz sobre se ela e as demais pessoas na mesma situação dispuseram das mesmas oportunidades que lhes devem ser garantidas numa sociedade justa.

Por outro lado, é plausível que haja quem prefira genuinamente seguir um caminho comparativamente menos lucrativo. Muitas pessoas enveredarão pelos mesmos caminhos profissionais que os pais por genuíno gosto e nem sempre isso se deve a menos oportunidades ou a não contemplarem outras trajetórias. Uma teoria da justiça liberal deve respeitar as preferências dos indivíduos nas suas escolhas de planos de vida.

Consideremos um último aspeto. Carlos Guimarães Pinto fala em progressão resultante do talento e da sorte. Mas devemos perguntar: como garantir o progresso social dos que não têm talento? Todos aceitamos que a discriminação económica em função da etnia ou da orientação sexual das pessoas seria injusta. Mas será a discriminação económica dos que têm menos talento mais aceitável? Uma resposta possível é a seguinte: sim, contanto que essa discriminação beneficie quem tem menos talento e menos sorte. No entanto, uma discriminação económica aceitável requer um limite à desigualdade de rendimentos, e isso, por sua vez, requer… IRS. Isto deve-se ao facto do IRS redistribuir dos 15% com mais rendimento para o resto da população.

Poder-se-á pensar que nada do que aqui é dito invalida que se possa reduzir substancialmente as taxas de IRS. Carlos Guimarães Pinto insiste muito na ideia de que Portugal pratica impostos de ricos sobre salários pobres. Contudo, só os 20% mais ricos pagam uma taxa de imposto superior à média, que é de 13%. É certo que o valor a partir do qual se entra para os 20% mais ricos de Portugal é diferente do valor a partir do qual se entra para os 20% mais ricos do Luxemburgo. Todavia, o nosso regime fiscal deve ser feito à medida da nossa distribuição de rendimentos e não a de outros países. Além disso, não há evidência empírica de que aligeirar impostos sobre os mais ricos faça subir o rendimento dos demais.

A demonização do IRS pela IL revela-se assim um engodo: formalmente, todos terão a possibilidade de subir na escada social até ao infinito e mais além. Mas esta abertura formal de portas é feita através da delapidação de um instrumento fundamental na luta por uma sociedade com mais oportunidades e menos desigualdade. Existem estirpes de libertarismo, corrente doutrinária em que a IL se insere, que rejeitam impostos mas se preocupam em combater a desigualdade por outros meios. Os libertários portugueses celebram-na enquanto dizem pretender combatê-la.

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