Intervir com agressores não presta um “desserviço” às vítimas

A proteção das vítimas e a redução da sua (re)vitimização não poderá apenas apoiar-se na punição dos agressores, devendo também desenvolver ações concomitantes e complementares.

Ouça este artigo
00:00
05:20

A abordagem da violência sexual (e dos seus principais atores) reveste-se de grande complexidade, não sendo possível promover a erradicação do fenómeno sem procurar aproximações e consensos nas esferas médica, legal, política e cultural.

A primeira Estratégia Nacional para os Direitos das Vítimas de Crime (ENDVC), a vigorar no quadriénio 2024-2028, procura abranger transversalmente todas as vítimas, ainda que com foco particular nas vítimas especialmente vulneráveis. É neste contexto que é feita menção à Comissão Independente para o Estudo do Abuso Sexual de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, cujo relatório final fornece uma imagem aproximada da dimensão deste problema em Portugal, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de o tratar de forma específica e urgente.

Dos vários pontos fortes da ENDVC, destaco o alinhamento com as diretrizes europeias que visam garantir os direitos fundamentais das vítimas e o envolvimento multidisciplinar e multissectorial em todas as fases do processo, desde o desenvolvimento da Estratégia, até à sua execução e contínua monitorização. De entre os múltiplos intervenientes, realço a inclusão de organizações da sociedade civil que prestam apoio às vítimas, norteando-se pela melhor evidência que aponta para a necessidade de envolver as vítimas e as instituições que com elas contactam proximamente, por forma a assegurar que a Estratégia a implementar é aceitável, acessível, inclusiva e eficaz.

Sendo claro que o desenvolvimento da ENDVC procura promover uma cultura de prevenção da violência/criminalidade, sob o mote “escutar as vítimas, reconhecendo e validando a sua perspetiva”, há ainda uma dimensão desta Estratégia que importa robustecer, designadamente a que se relaciona com a abordagem e intervenção com os perpetradores de crimes violentos. Sem prejuízo da necessidade de os “responsabilizar e sancionar” (ENDVC), entendo que uma Estratégia que tem como objetivo último a proteção das vítimas e a redução da sua (re)vitimização não poderá apenas apoiar-se na punição dos agressores, devendo também desenvolver – à semelhança do que acontece noutros contextos (e.g. violência contra mulheres) – ações concomitantes e complementares que possam reduzir a reincidência criminal, i.e., mitigar a repetição de crimes idênticos sobre a mesma ou novas vítimas.

Apostar na prevenção e na intervenção com agressores e potenciais agressores pode desempenhar um papel crucial na proteção das vítimas de abuso sexual na Igreja Católica. Desde logo pela identificação e sinalização atempada de situações de risco potencial (pré abuso), implementando medidas preventivas, mas também pela identificação precoce de vítimas e potenciais vítimas, garantindo o seu acesso a serviços de proteção e de apoio, clínico e judicial. Depois, pela responsabilização dos agressores, promovendo a investigação de todas as denúncias realizadas e o julgamento de todos os factos ilícitos alegados, de acordo com o direito penal (e, quando aplicável, também pelo direito canónico). Simultaneamente, pelo (maior) investimento na reabilitação dos agressores que, neste contexto, deverá ser entendida como uma intervenção capaz de reduzir a probabilidade de repetição de crimes sexuais.

Baseando-se numa lógica (aqui simplificada) de dialética entre fatores de risco (que devem ser eliminados ou atenuados) e fatores de proteção (que devem ser potenciados), a avaliação e intervenção com um agressor deve ser individualizada, multimodal e multidisciplinar, procurando-se, entre outros: i) o reconhecimento da ilicitude do(s) ato(s) praticado(s); ii) a compreensão da dimensão e diversidade dos danos causados à(s) vítima(s); iii) a motivação intrínseca para a cessação do comportamento, que deve ser também suportada em intervenções psicoterapêuticas e, quando indicado, psicofarmacológicas. Finalmente, este investimento pode conduzir a uma compreensão mais profunda e fidedigna da natureza e extensão desta problemática, permitindo delinear as melhores e mais eficazes estratégias para a prevenir, combater e eliminar.

O Grupo Vita, funcionalmente autónomo e independente, sinaliza um esforço das estruturas eclesiásticas portuguesas para mudar o paradigma, apostando na transparência dos processos e das ações. Ao longo do último ano, o Grupo VITA tem investido na formação – com o desenvolvimento do manual Conhecer. Prevenir. Agir - Manual de Prevenção Da Violência Sexual Contra Crianças e Adultos Vulneráveis No Contexto Da Igreja Católica Em Portugal (2023) – e na intervenção – com a criação de uma bolsa de psicólogos e psiquiatras com formação na área da violência e que acompanham vítimas ou agressores (os profissionais, os contextos e os objetivos da intervenção são distintos para cada uma destas populações).

Em conclusão, garantir às vítimas de abuso sexual na Igreja acesso a serviços de apoio e proteção é basilar em qualquer abordagem do problema, mas este trabalho tem de ser complementado com medidas mais abrangentes que consigam prevenir o abuso, responsabilizar e reabilitar os agressores, promover mudanças sistémicas (e.g. culturais, organizacionais) na Igreja enquanto Instituição, e aumentar a educação e consciencialização da população geral através de políticas robustas (na teoria e na prática), campanhas mediáticas e programas educativos. Só assim é possível criar um ambiente seguro para todos os membros da comunidade, na Igreja e fora dela.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Pode contactar o Grupo VITA através do telemóvel 91 509 0000 ou do email geral@grupovita.pt. Saiba mais sobre nós em www.grupovita.pt.

Sugerir correcção
Comentar