Tribunais internacionais (mas só) para problemas nacionais?

A natureza verdadeiramente global das alterações climáticas continua a representar um problema difícil para o direito e para os tribunais.

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O fenómeno global de litigância climática teve ontem um dos seus pontos altos, com todas as atenções focadas em Estrasburgo para a leitura das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos relativas aos (primeiros) três casos de litigância climática. Apenas um destes casos obteve uma decisão favorável e as questões jurídicas a discutir são muitas. Vamos tratar apenas de uma: tem um tribunal internacional os instrumentos legais para decidir casos sobre problemas globais, com causas difusas e impactos extraterritoriais?

É hoje consensual a afirmação de que as alterações climáticas criam perigos e danos para vários direitos humanos, nomeadamente por força de eventos climatéricos extremos. É também sabido que as causas desses eventos são difusas, resultantes das mais variadas atividades praticadas por todo o globo — ou seja, em todos os Estados; e ainda que as consequências das alterações climáticas também não reconhecem fronteiras, delimitações de jurisdições e soberanias. Em suma, as emissões provenientes de qualquer lugar no globo podem ter impactos também em qualquer lugar.

Esta natureza verdadeiramente global das alterações climáticas continua a representar um problema difícil para o direito e para os tribunais. O sistema legal internacional é construído sob os pressupostos da soberania e jurisdição que cada Estado tem sobre o seu território. No contexto da proteção de direitos humanos, tal significa que, em regra, cada Estado é responsável pelas violações que ocorrem num território sob o seu controlo. Associado a este pressuposto está uma condição processual comum para acesso aos tribunais internacionais, incluindo no caso do Tribunal Europeu: a de que os queixosos tenham previamente recorrido aos tribunais nacionais e esgotado as possibilidades de obterem uma solução ao nível interno – na sua jurisdição.

A questão que se coloca, então, é se este modelo é capaz de lidar com problemas que não estão relacionados com as ações ocorridas no território de um Estado específico, ou conjunto de Estados, como é o caso dos problemas ambientais globais.

Ontem, o Tribunal Europeu pronunciou-se pela primeira vez sobre estes temas. Na primeira das suas decisões, o Tribunal aceitou a ação proposta pela associação Klimaseniorinnen – atendendo ao facto de as alterações climáticas serem uma preocupação comum da humanidade e com encargos intergeracionais – e concluiu pela violação dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e a um processo equitativo. Reconheceu ainda expressamente que a Convenção Europeia de Direitos Humanos inclui um direito à proteção contra os efeitos adversos graves resultantes de alterações climáticas, pelo que os Estados têm de tomar medidas para alcançar a neutralidade carbónica dentro das próximas três décadas.

Apesar da importância desta decisão, o verdadeiro teste ao sistema de proteção de direitos humanos na Europa estava no caso Duarte Agostinho por dois motivos:

(i) A ação foi proposta por seis jovens de nacionalidade e residência portuguesa contra Portugal, mas também contra 32 Estados com cujos territórios os jovens não têm qualquer relação direta.

A razão de ser desta opção parece óbvia, atendendo à natureza do problema: os danos que alegam sofrer resultam de emissões de gases com efeito de estufa provenientes de todos os Estados. Assim, os jovens invocaram que prevenir os impactos das alterações climáticas está sob o controlo — ou seja, sob a jurisdição — de qualquer Estado, mesmo que dele não sejam nacionais ou aí residentes.

(ii) A ação não foi precedida da utilização de todos os meios internos de proteção, com fundamento na extrema dificuldade no cumprimento desta exigência processual junto dos tribunais de todos os 33 Estados na ação.

O Tribunal reconheceu, como alegado, que as emissões têm origem em todos os Estados. Contudo, concluiu que estes fatores não eram suficientes para aceitar que os Estados tivessem controlo sobre a situação dos jovens, com exceção de Portugal, onde residem. Em consequência, decidiu também que não havia razões excecionais para admitir esta ação sem prévia utilização dos meios de proteção existentes no Estado com jurisdição — ou seja, Portugal. Por estes motivos, a ação não foi admitida pelo Tribunal Europeu.

O sistema europeu de direitos humanos não superou, assim, a prova de esforço a que os problemas ambientais globalizados sujeitam todo o ordenamento jurídico. Mas a criatividade e a sofisticação das ações climáticas não deixarão certamente de tentar uma inflexão ou uma mudança estrutural no direito para que dê resposta aos desafios contemporâneos.


As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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