O monte onde os Capitães de Abril se reuniram é um turismo rural com memória

O Monte do Sobral, no Alentejo, preserva a história e atrai muitos visitantes. Este ano, a Associação 25 de Abril tenciona marcar os 50 anos da Revolução deixando um chaimite como monumento.

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Monte do Sobral viu nascer o Movimento dos Capitães LUSA/NUNO VEIGA
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Eram mais de 130, chegaram em segredo ao Monte do Sobral, "perdido" no Alentejo, para a primeira reunião do movimento dos capitães. Hoje, é uma unidade de turismo rural e a memória desse encontro clandestino continua a atrair pessoas.

A meio caminho entre Alcáçovas e Viana do Alentejo, no distrito de Évora, um monte típico da região, com casas baixinhas caiadas de branco e com rodapé azul, já não passa despercebido a quem circula na estrada e até se tornou famoso.

Mas, há pouco mais de 50 anos, no dia 9 de Setembro de 1973, longe dos olhares atentos do então regime, foi lá, no Monte do Sobral, que 136 oficiais realizaram uma reunião clandestina que marcou o início do Movimento das Forças Armadas (MFA), que viria a ajudar a pôr fim à ditadura.

"Era um monte completamente isolado e muito difícil de lá chegar", recorda à agência Lusa José Luís Cardoso, um dos militares que participaram naquela reunião e, mais tarde, advogado e governador civil de Évora.

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O advogado e antigo governador civil de Évora, José Luís Cardoso, foi um dos militares que participaram na reunião NUNO VEIGA/LUSA

O então capitão na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, também no distrito de Évora, conta que, na altura, foi criada uma comissão clandestina que agregava os militares descontentes com o rumo das forças armadas. "Foi essa comissão que decidiu fazer esta reunião, algures onde o Governo não pudesse intervir", evoca.

O também capitão Diniz de Almeida, já falecido, foi quem "arranjou o monte", lembra José Luís Cardoso, relatando que este oficial conseguiu o espaço depois de pedir ajuda ao primo José Manuel Leitão, que era genro do rendeiro Celestino Garcia.

Com o espaço assegurado, os organizadores da reunião começaram a mobilizar jovens oficiais descontentes. José Luís Cardoso, na altura com pouco mais de 30 anos, recebeu em mão, em Vendas Novas, o mapa sobre o local e outros obtiveram-no em pontos secretos espalhados pelo país.

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O Monte do Sobral mantém viva a história NUNO VEIGA/LUSA

"Todos vieram cá ter e não houve problema nenhum. Foi bem organizado e a distribuição [do mapa] foi feita em vários sítios", assevera.

Admitindo que na origem da insatisfação estavam decretos do então Governo sobre a carreira militar, este capitão de Abril afiança que a maioria "não queria saber para nada" dessas decisões e que a reunião sobre o tema "era apenas uma causa que mobilizava".

"Eu era um dos beneficiados, mas fui porque não estava minimamente motivado. Estava lá por outros motivos", assinala, afirmando rever-se no que o também capitão Vasco Lourenço disse, que "estava lá porque queria outras coisas que seriam o 25 de Abril e a mudança de regime".

Naquele dia, segundo José Luís Cardoso, os jovens oficiais reuniram-se, discursaram em cima do atrelado de um tractor e assinaram um abaixo-assinado com reivindicações.

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Sala no Monte do Sobral onde se encontraram os oficiais na reunião que deu origem ao Movimento dos Capitães NUNO VEIGA/LUSA

"Ninguém falou em golpe de estado. Falou-se na barbaridade que era para as progressões nas carreiras dos oficiais da Academia Militar os decretos que o Governo tinha publicado", assinala.

Mas estavam lançadas as bases do que viria a ser o MFA e, nos meses seguintes, sucederam-se reuniões cada vez mais ousadas: "Quanto mais força sabíamos que tínhamos, mais públicas eram as reuniões", frisa.

Aquando do primeiro encontro no monte alentejano, num período em que reinava o medo, nem mesmo os que foram convocados sabiam quem ia e só o descobriram quando lá chegaram. E fora deste grupo o segredo foi quase absoluto.

"O rendeiro sabia e foi ele que o cedeu ao Diniz de Almeida. Era um homem de oposição ao regime e penso, agora mais tarde, que era afeto ao Partido Comunista", refere.

Já o então proprietário do Monte do Sobral, Marco Fragoso Fernandes, como o próprio realça à Lusa, só veio a saber "umas semanas depois". Nem nas povoações mais próximas se ouviram conversas sobre o encontro.

"Não se chegou a falar em nada, porque fizeram aquilo bem feito e não transpirou nada cá para fora", vinca.

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A Associação 25 de Abril volta anualmente ao Monte do Sobral NUNO VEIGA/LUSA

Fragoso Fernandes diz que, anos depois da reunião, criou no monte uma unidade de agroturismo, mas acabou por ter de vender porque "não era rentável".

Quem o comprou, em 2019, foi Annick Chef, uma francesa que escolheu viver em Portugal por causa da segurança no país. Apaixonou-se pela propriedade, mesmo antes de conhecer a sua história.

"Eu teria comprado na mesma, mas, depois, disse a mim própria: porque não aproveitar esta história e esta oportunidade?", recorda.

Annick comprou o monte e iniciou-se então um longo período de obras para o melhorar, porque, caso contrário, como alega, "provavelmente acabaria por se degradar cada vez mais". Pelo meio, meteu-se ainda a pandemia.

"Houve altos e baixos, mas estamos a resistir", sublinha a francesa, que, já no seu país, foi dona de um pequeno imóvel também histórico, mas ligado à II Guerra Mundial.

No Monte do Sobral, com nove quartos e uma sala para casamentos, baptizados e eventos com capacidade para até 200 pessoas, os hóspedes podem ainda usufruir de um jardim e de piscina exterior.

"Algumas pessoas passam espontaneamente na estrada e entram para dar uma olhadela", mas outras "vêm dormir só para estarem naquele local", devido à sua história, nota.

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A francesa Annick, a atual proprietária NUNO VEIGA/LUSA

Francesa, natural de Avinhão, no sul de França, Annick quer fazer mais eventos para dinamizar o monte e já pensa no próximo aniversário da primeira reunião dos Capitães de Abril, no próximo dia 9 de Setembro.

Anualmente, o dia está reservado para a Associação 25 de Abril, que tenciona, nas 5 deste ano, deixar no monte uma chaimite, viatura militar historicamente associada ao 25 de Abril.

E a proprietária gostaria também de fazer uma reconstituição da desta reunião histórica com a ajuda da população das três freguesias do concelho: Viana do Alentejo, Alcáçovas e Aguiar.

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