Um dia, os filhos voam

É fácil passar de um estado de serenidade para um estado de ira. O inverso não o é.

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Cerca de 20 minutos depois do início de um jogo de juniores do campeonato da segunda divisão da Associação de Futebol de Lisboa, um jogador atingiu pelas costas um adversário. O jogador afetado gritou e caiu. O árbitro marcou a falta e, após inteirar-se do estado do jogador lesionado, chamou a assistência médica.

Entretanto, o jogador faltoso dirigiu algumas palavras ao jogador que lesionara. Este levantou-se do chão numa fração de segundo (a raiva tem efeitos analgésicos) para confrontar o adversário. Colegas e árbitro acalmaram a situação, mas o jogador magoado não se conformou e prometeu vingança. O jogo prosseguiu. Eu estava a dois metros do campo e vi um homem aproximar-se pela minha esquerda.

– Vais ter calma! Estás a ouvir? Vais ter calma! – disse com firmeza, mas sem gritar, um homem na casa dos cinquenta anos.

– Está bem, está bem – respondeu o jogador em recuperação, sem olhar para o homem que se dirigira a si.

– Estás a ouvir? Tem cabeça, rapaz.

– Ó pai, eu já sei o que dizes, mas agora deixa-me que estou a jogar, está bem?

– Está bem, mas não vais andar atrás do rapaz para lhe bater, estás a ouvir? Joga à bola! Tem juízo. Tu não és assim.

A transformação. Onde até então só se via raiva e sede de vingança, passou a ver-se respeito, humildade e serenidade. O rapaz anuiu timidamente na direção do pai e aguardou a ordem do árbitro para reentrar em campo. Quando o fez, correu atrás da bola. Da bola, não do adversário que há minutos cometera a falta sobre si, e que por acaso até estava com a bola nos pés.

Nunca vamos saber o que teria acontecido se o pai não tivesse corrido para junto do filho para o acalmar. O que temos é o que aconteceu: palavras sensatas e carregadas de amor, proferidas por um pai, que, sem erguer a voz para se fazer ouvir, acalmou o filho ruborizado de ira. A situação sensibilizou-me. É fácil passar de um estado de serenidade para um estado de ira. O inverso não o é.

O jogo prosseguiu. De vez em quando, espreitei o pai na bancada. Pareceu-me tranquilo e ao mesmo tempo vigilante, ciente de que educou bem, mas que os ajustes pontuais (puxões de orelhas?) são tarefa perene de um pai.

Preparar um filho para a vida, sem lhe cortar as asas, é difícil. Faz-se pelo exemplo, dizem uns. Pela retórica, dizem outros. E ainda há quem prefira a mão firme. Ou a liberdade total. Enfim, teorias não faltam. Casos de sucesso e insucesso pela prática de qualquer uma delas também não.

Quando uma criança ensaia os primeiros passos, é comum corrermos na sua direção para tentar evitar um tombo. É o instinto de pai, mãe, avós, irmãos, cuidadores. Mas é inegável que o tombo faz parte do processo de começar a andar e, diz quem sabe, demasiado protecionismo pode atrasar o desenvolvimento motor da criança. Dói vê-los cair, claro, mas não será necessário?

Válido para toda a vida.

Enquanto via o jogo, formulei para mim próprio uma pergunta: “em que momento é que o bater de asa de um filho o deixa irremediavelmente à sua mercê?”

Como resposta, não consegui mais do que outra pergunta: “nunca?”


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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