Portugal vai ter novo estudo sobre comunidades ciganas, dez anos depois

Estudo vai incluir projectos com a comunidade cigana, que irá “fazer uma espécie de consultoria ao projecto”, além de dois inquéritos nacionais, englobando continente e ilhas.

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O primeiro, e único, estudo nacional sobre as comunidades ciganas foi encomendado pelo Alto Comissariado para as Migrações e realizado em 2014 Paulo Pimenta (ARQUIVO)
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Portugal vai ter um novo estudo nacional sobre as comunidades ciganas, de quantificação, mas também caracterização, que deverá arrancar em Maio, tem a duração prevista de dois anos e será elaborado por um consórcio académico. Investigadora alerta para o aumento do anticiganismo e para a "urgência" da falta de habitação.

O estudo é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), na sequência de um concurso público, em que venceu o projecto apresentado pelo Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto e o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

Em declarações à agência Lusa, por ocasião do Dia Internacional das Pessoas Ciganas, que se comemora na segunda-feira, Maria Manuela Mendes, da equipa do CIES, afirmou que o estudo deverá começar a ser feito brevemente, em princípio em Maio, tendo em conta que ainda falta aguardar pelo fim do prazo para que os outros projectos contestem o resultado do concurso.

A investigadora adiantou que o objectivo é "fazer um novo estudo sobre a população cigana" depois de o anterior ter sido publicado em 2014, e actualizar o diagnóstico e o conhecimento sobre as comunidades ciganas.

"Até avançar noutras frentes, nomeadamente um conhecimento histórico mais aprofundado sobre a presença também das pessoas ciganas em Portugal, que é uma coisa que não está muito desenvolvida e não há muito conhecimento produzido a esse propósito", explicou.

Maria Manuela Mendes adiantou que o financiamento do projecto é para dois anos, estimando que em Maio de 2026 esteja concluído. Os resultados parcelares irão sendo divulgados, além de estarem pensadas publicações, eventos para a apresentação e discussão de resultados, que incluirá organizações, activistas e membros da comunidade cigana.

Segundo a investigadora, o estudo vai incluir projectos com a comunidade cigana, que irá "fazer uma espécie de consultoria ao projecto", além de dois inquéritos nacionais, englobando continente e ilhas.

"Vai haver um inquérito à população cigana portuguesa, com uma amostra bastante elevada, um inquérito também à população não cigana sobre os ciganos, sobre as representações que têm relativamente à população cigana", adiantou.

Além disso, acrescentou a investigadora, haverá uma componente qualitativa de aprofundamento e um trabalho etnográfico "em algumas comunidades que experienciam situações habitacionais mais complicadas e, eventualmente, mais precárias, em diferentes zonas do país".

O estudo irá procurar saber quantas pessoas ciganas vivem em Portugal, mas também terá "uma componente qualitativa, com entrevistas, com histórias de vida" e retratos sociológicos sobre "alguns perfis de pessoas e famílias ciganas".

Maria Manuela Mendes sublinhou que esta componente histórica terá "bastante ênfase", havendo também componentes como workshops participativos com as pessoas ciganas, ou exposições. "Acho que vai ser um trabalho muito interessante", apontou Maria Manuela Mendes.

O primeiro, e até agora único, estudo nacional sobre as comunidades ciganas, encomendado pelo Alto Comissariado para as Migrações, realizado em 2014, com base em entrevistas a 1599 pessoas ciganas, revelou que os ciganos portugueses tinham baixos níveis de escolaridade, casavam cedo e faziam da venda ambulante a principal actividade económica.

Anticiganismo aumenta

Por outro lado, a socióloga Maria Manuela Mendes, com investigação sobre temas ciganos, não acredita que possa haver uma regressão nos direitos das pessoas ciganas, mas alertou para o aumento do anticiganismo e para a "urgência" da falta de habitação.

Para a investigadora, o processo de democratização e consolidação da democracia desde há 50 anos impede que haja um retrocesso nos direitos das pessoas ciganas em Portugal. "Há muitas coisas que mudaram, nomeadamente este reaparecimento de populismos mais extremados e de direita, que podem colocar alguns desafios", apontou, contudo, sublinhando que isso tanto poderá acontecer com as comunidades ciganas como com outras minorias.

"Os populismos mais radicais ou de extremos e de direita normalmente fazem aquela divisão tradicional entre nós e eles e nós e eles podem ser as minorias étnicas, as minorias religiosas, até podem ser as mulheres", acrescentou, defendendo que todos têm de estar "vigilantes".

A propósito, lembrou, que durante o período da pandemia "o populismo cresceu muito", sobretudo direccionado para a população cigana, "nomeadamente discursos de ódio e de incitamento ao ódio", que "cresceram muito" na Europa em geral e em Portugal também.

"Este populismo, relativamente aos ciganos, acaba por manifestar-se em grande medida através daquilo que é o anticiganismo, que é uma forma específica de racismo enraizada muito naquela ideologia de superioridade racial e que acaba por retirar características humanas às pessoas ciganas", explicou.

De acordo com a socióloga, este fenómeno tem "também muito a ver com a tal discriminação histórica e enraizada nas sociedades", que "se manifesta em práticas de discriminação, digamos institucionais, até práticas mais violentas".

"Olham para as pessoas ciganas como se tivessem só determinadas características e como se fossem todas iguais", apontou, alertando que observa-se "uma grande aceitação do anticiganismo na Europa nos últimos tempos", nomeadamente entre políticos com "posições de destaque".

Para a investigadora, o anticiganismo em Portugal manifesta-se actualmente de "forma muito descarada, muito aberta", apontando que para isso contribuiu a influência do partido Chega.

Por outro lado, Maria Manuela Mendes disse que o país avançou muito em relação às pessoas ciganas, mas sublinhou que ainda há muita coisa que falta fazer, destacando o acesso à habitação como o problema que "afecta de forma muito significativa" esta comunidade e lembrando que "foram séculos de uma discriminação histórica".

Ao mesmo tempo, a socióloga defendeu que a questão da habitação compromete a inclusão das pessoas ciganas noutras áreas da vida, como o estudo ou a procura de trabalho, além de ter também impacto na qualidade da saúde destas pessoas, a partir do momento em que vivem "em situações de fragilidade socioeconómica e até habitacional".

Sobre a área do emprego, a investigadora sublinhou que, à semelhança da habitação, este é um dos eixos no qual "pouco se fez", salientando que há uma grande discrepância entre pessoas ciganas e não ciganas empregadas e que o estudo da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais indica que em 75% dos casos os ciganos sentem-se discriminados quando procuram emprego.

O Dia Internacional das Pessoas Ciganas foi criado em 1971, por ocasião do primeiro Congresso Mundial Romani, em Londres, no qual foi escolhida uma bandeira única e foi decidido criar uma linguagem universal para os povos ciganos, além da adopção da palavra "roma" para identificar estas pessoas.

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