Em Portugal não há ciência de governar

A afirmação de Eça, em 1867, de que “a ciência de governar” é neste país “influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse”, mantém-se actual.

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Com esta citação de Eça de Queiroz, de 1867 (in Distrito de Évora), pretendo manifestar a minha opinião, enquanto cidadão livre, no que diz respeito à primeira decisão política do novo Governo AD da passada terça-feira, dia 2 de Abril – o da reversão da imagem institucional do país. Não é uma decisão política menor. O retrato feito por Eça em 1867, de que “a ciência de governar é [neste país] uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse”, mantém a sua total actualidade, infelizmente. Embora não fazendo (ainda) parte das principais promessas feitas em campanha eleitoral, o alcance desta mesma decisão é incontornável. É simbólica de uma deriva de consequências eventualmente imprevisíveis.

A primeira medida do novo governo é, portanto, mera propaganda política, e o início de uma nova campanha eleitoral, pois muito presumivelmente teremos no final do ano novas eleições. Neste processo Eduardo Aires, designer português reconhecido pelos seus pares e internacionalmente galardoado, é manifestamente um mero bode expiatório. Lamentável, pois quem perde, de facto, é o país, que não precisa de exercícios de propaganda política.

Esta mudança ordenada no primeiro dia de funções do novo governo, é inopinada e, principalmente, de natureza puramente ideológica. Com efeito, a reversão do símbolo criado pelo Studio Eduardo Aires e adoptado pelo anterior Governo acaba por acontecer, agora, como uma previsível arma de arremesso por parte das direitas, já empreendida ao longo dos últimos meses.

Mais do que significar uma qualquer discordância conceptual ou artística, esta iniciativa pode ser lida como estratégia de confronto político-partidário, com o único intuito de se garantir, aparentemente, a sobrevivência política da AD no poder. Haverá, por isso, um intuito de marcação simbólica de territórios políticos face ao PS e ao Chega. Mas é extraordinário que as razões, sugeridas, para a substituição da nova imagem institucional tenham que ver com razões, irracionais, meramente políticas de teor nacionalista, e não culturais e artísticas, como deveria ser. Perante a inexistência de debate democrático impõe-se a intolerância. É lamentável, e está em contraciclo com o espírito de Abril, em que a ignorância tem vindo a fazer caminho ultimamente. Consequentemente, e para além de arma de arremesso político, esta primeira decisão política do novo governo tem um significado muito simbólico – o de abrir um processo de campanha política constante e permanente.

Decisão esta leviana, anticultural, pois parece conflituar com as dimensões livres de um pensamento sobre cultura e estética. Também por estas razões, é possível a leitura de que a anulação do trabalho gráfico de Eduardo Aires tenha sido uma decisão fundada numa iniciativa de censura. O que, a ser verdade, como parece, é manifestamente impensável em democracia e num Estado de direito.

No ano em que comemoramos 50 anos de liberdade, os tempos actuais voltam a ser de grande incerteza e preocupação. Com o avanço dos radicalismos e da extrema-direita sublinha-se uma deriva neoliberal e ultraconservadora sem limites, que pode mesmo comprometer as liberdades fundamentais. Nomeadamente a liberdade de expressão e de criação. O que se constata pela baixa qualidade da política e dos políticos existentes, e que descredibiliza o exercício da própria democracia. Aliás, é muito curioso observar que já em 1872, Eça de Queiroz (in As Farpas) falava, a este propósito, de indignidade política, de baixeza de carácter, e de decadência de espírito.

Meu Caro Eduardo, estou chocado com a primeira e baixa decisão política do novo governo – decisão saloia, mesquinha e provinciana. Estamos a retroceder 150 anos, ao tempo de Eça de Queiroz? De qualquer modo, deves entender que o teu trabalho incomoda a ignorância, e isso, é a demonstração de que estás certo. Então, temos todos o compromisso de combater uma política cultural parola e sem futuro, que não nos promove, que não nos educa.

Não obstante este incidente de liberdade, e que é o que parece prometer este governo, a prazo, e já em campanha, obriga-nos que denunciemos a eventual perda da tolerância e da sã convivência na medida das nossas possibilidades – impedindo que a liberdade seja posta em causa, e que possamos todos continuar a viver, como a quetzal, ave trepadora da América Central que morre quando privada de liberdade.

Eduardo, estou perplexo, mas completamente solidário contigo. Um grande abraço.

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