Quando o silêncio é de prata

A Igreja tem de fazer um esforço de pedagogia para distinguir o bom silêncio do mau, ou, como se diz nas Escrituras, para tornar claro que há “tempo de estar calado e tempo de falar”.

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A religião e o silêncio andam de mãos unidas. A palavra, no seu uso público, é escassa e tabelada, em fórmulas e leituras, nos ritos e nas rezas, e só é livre quando é para ser ouvida por quem está do lado de cá a observar o púlpito ou quando é dita em privado a quem o ocupa, e mesmo aqui só com o selo inquebrável do segredo. É assim – ou pelo menos assim parece ser para quem vê de fora – nas orações, reflexões e rituais, mas também na vida interna da Igreja, nos seus procedimentos, nas averiguações e nas descobertas, nos arquivos, nos estudos e até, em regra, nos processos canónicos.

Esta ligação entre o silêncio e a religião é, até certo ponto, compreensível e necessária, na relação da instituição com o crente, por ser uma prática que pressupõe introspeção e humildade, e que assenta numa relação de confiança, não paritária, entre quem tem autoridade moral para guiar e quem procura o caminho para seguir. Também se percebe que assim seja no que respeita à vida interna da Igreja, enquanto organização privada, que não tem um dever de total transparência sobre os vários aspetos da sua atividade. Tudo até certo ponto.

O silêncio que perpassa a prática religiosa, quando associado à dinâmica de poder que existe entre diferentes graus da hierarquia religiosa e entre padre e crente, e a fatores como a exaltação da obediência ao sacerdote e uma ausência de escrutínio, sobretudo externo e independente, tende a transformar-se numa cultura de silêncio transversal, em que o silêncio passa a ser um valor em si mesmo, sem que se olhe ao que com ele se pretende alcançar.

Olhar para o silêncio, não como norma, mas como dogma, sem perguntar pela sua razão de ser, torna o silêncio segredo, quando nem sempre são sinónimos, e cria as condições para que a batina se transforme na camuflagem de quem pretende abusar da autoridade que lhe foi canonicamente atribuída para se aproveitar de quem nela confia.

Se a Igreja quer, e acredito que queira, deixar de ser um porto seguro para casos destes, então tem de fazer um esforço de pedagogia para distinguir o bom silêncio do mau, ou, como se diz nas Escrituras, para tornar claro que há “tempo de estar calado e tempo de falar”, não apenas para os fiéis, mas para todos os que a integram.

Isso faz-se a afirmar, de dentro para fora, que os crimes praticados na Igreja são assuntos da comunidade, e não do foro interno da instituição; que não são problemas canónicos ou disciplinares a requerer reorganizações e recolocações administrativas em segredo, mas que são notícias de infrações penais, que têm de ser denunciadas a quem tem a responsabilidade secular de exercer a ação penal: o Ministério Público.

Para que assim seja, existem duas medidas fundamentais a adotar.

Primeiro, a implementação de canais de denúncia, especialmente focados em crimes sexuais, em todas as instituições religiosas que lidem com crianças ou adultos vulneráveis. Canais, como o proposto pelo Grupo Vita, que têm como objetivo trazer mais luz para o interior da instituição, criando uma verdadeira cultura de transparência, e assegurando que quaisquer suspeitas serão devidamente encaminhadas e investigadas, numa justa concordância dos interesses em confronto.

Segundo, é necessária a criação de um dever de denúncia, de preferência pelo legislador secular, que incida sobre quem exerça funções, ainda que não remuneradas, com crianças ou adultos vulneráveis, incluindo em contexto religioso. Um dever de denúncia que poderá ser já implementado espontaneamente pela Igreja, que não olhe à qualidade do denunciante dentro do seu quadro institucional, mas apenas à qualidade da vítima, e que, assim, converta a Igreja em porto seguro para os menores, afirmando, de forma firme e irreversível, a já proclamada tolerância zero que permitirá tornar clara a distinção entre a absolvição moral e a impunidade penal.

A Igreja tem tudo o que precisa do seu lado para implementar estas medidas. Resta agora quebrar o silêncio sobre se e quando tenciona fazê-lo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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