O problema de humilhar pessoas por tirarem selfies em Auschwitz

É tido amplamente como controverso e de mau gosto, mas antes de comentares e humilhares as pessoas, há algumas coisas em que podes pensar.

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As selfies tornaram-se o equivalente a postais, são uma forma de partilhar as nossas experiências com amigos e família nas redes sociais. Uma coisa é fazer uma pose pateta para a foto numa praia ou praça, mas, e se estivermos a visitar um memorial do Holocausto?

Tirar fotos engraçadas, até patetas, em locais como as “florestas do suicídio” japonesas ou nos campos de concentração tornou-se recorrente. E é tido amplamente como controverso e de mau gosto.

Em 2017, o artista germano-israelista Shahak Shapira lançou um projecto que pretendia envergonhar os visitantes que tiram selfies no Memorial aos Judeus Mortos na Europa, em Berlim. O projecto chamava-se Yolocaust — uma junção de “yolo” (you only live once, só vives uma vez, em português) e Holocausto. Juntava fotos históricas das vítimas do regime Nazi com fotos dos visitantes, a fazer malabarismo e a saltar, a fazer poses e a brincar no memorial alemão.

Desde então, os vigilantes online têm-se sentido legitimados a envergonhar os que tiram fotos em locais relacionados com o Holocausto. Muitos comentam “yolocaust” nessas fotos, como uma forma de censura, julgamento e pânico moral.

Analisámos centenas de publicações, legendas e comentários, para perceber como é que as pessoas que tiram estas selfies são percepcionadas e punidas por outros online. Examinámos publicações com tags de localização em Auschwitz, na Polónia, e no Memorial aos Judeus Mortos na Europa, em Berlim.

Com base na nossa análise, consideramos que é melhor que os jovens se relacionem com o Holocausto à sua própria maneira, ao invés de não se relacionarem de todo. Também acreditamos que algumas das pessoas que comentam podem ser tão culpadas como as que tiram as selfies, ao usarem os seus comentários para se posicionarem positivamente. Paradoxalmente, é precisamente o que estão a apontar a quem tira selfies: estão a centrar-se no debate, usando o Holocausto como um adereço.

O vigilantismo e a humilhação pública fazem parte da vida há séculos — pensa nos aldeões zangados com forquilhas levantadas. Os vigilantes consideram que têm de prevenir, investigar e punir comportamentos percepcionados como errados, geralmente sem autoridade legal.

Os vigilantes online (ou “digilantes”) punem outros por transgressões online. Actuam quando sentem que alguém cometeu um crime ou erro na Internet, sob a forma de cultura de cancelamento. Há, claro, uma linha ténue entre questionar alguém de forma construtiva e humilhar publicamente.

Quem é humilhado?

Descobrimos que não é qualquer foto (também olhámos para fotos de turistas que não eram selfies) que atrai a humilhação online. Algumas pessoas eram mais propensas a receber comentários negativos do que outras, dependendo de factores como idade, género, identidade cultural, pose e expressão facial e das legendas que acompanhavam as fotos.

Os mais jovens, especialmente aqueles que são convencionalmente mais atraentes — especialmente as mulheres, e especialmente pessoas que publicavam em inglês ou espanhol —, atraíam muitos comentários negativos. Em contraste, pessoas mais velhas e convencionalmente menos “sexy”, homens e que publicavam em, por exemplo, italiano ou espanhol tinham mais probabilidades de ser ignoradas.

Alguns destes padrões aparecem relacionados com a forma como jovens mulheres são frequentemente sexualizadas e humilhadas online, especialmente no que toca a selfies com poses de modelos. Para alguns comentadores, é mais aceitável humilhar aqueles que a sociedade já considera irreverentes e pouco sérios.

A localização também é importante. Enquanto o Memorial de Berlim viu muitos comportamentos de turistas serem considerados “desrespeitosos” pelos comentadores, era mais raro encontrar pessoas a tirar selfies em Auschwitz. O que pode dever-se ao facto de Auschwitz ser um local pago e com visitas guiadas estruturadas.

Em contraste, o memorial de Berlim é uma instalação artística, aberta e que faz parte da paisagem pública. O seu propósito e o significado podem não ser imediatamente aparentes. Isto deixa espaço para que algumas das selfies lá captadas sejam inocentes, uma parte acidental do turismo em Berlim.

Outro preditor de comentários negativos: as legendas das fotos que examinámos. Se a legenda fosse irreverente ou sugerisse uma falta de envolvimento com a história e a memória do Holocausto, a foto atraía mais comentários críticos. Aqueles que fizeram uma tentativa de justificar ou até de intelectualizar a sua foto eram geralmente menos censurados.

Um exemplo é o de uma mulher que publicou uma fotografia a saltar entre as lajes de cimento do memorial de Berlim. Mas a sua foto faz-se acompanhar de uma legenda cuidadosa que questiona explicitamente se o seu comportamento é ético.

“Uma parte de ti quer explorar a estrutura pelo que ela é fisicamente. A outra diz-te que não podes participar em nada que te traga felicidade enquanto estás aqui”, escreveu. Como a legenda parece neutralizar a selfie divertida, a sua publicação escapa a comentários críticos.

Pensa antes de humilhares

Ainda que o Museu de Auschwitz diga aos visitantes para não tirarem selfies, e ainda que tirar selfies possa parecer desrespeitoso, não defendemos que seja proibido, como alguns comentadores defenderam.

Consideramos que é mais importante manter viva – ainda que de forma imperfeita – a memória de mais de seis milhões de judeus e milhões de outros que foram mortos pelos Nazis. Talvez isto seja mais bem feito através das normais, complexas e confusas, mas também alegres vidas das pessoas, que contrastam com as que as vítimas do regime Nazi não puderam ter.

Também acreditamos que é importante questionar o que move os próprios “digilantes”. Alguns parecem usar os seus comentários para mostrar a sua superioridade moral, ao invés de tentarem educar ou influenciar o comportamento de quem tira selfies.

Antes de te juntares aos “digilantes” e de comentares algo que aches que é desrespeitoso, pensa porque é que o estás a fazer – estas imagens, as legendas e os comentários mostram que há, geralmente, mais nuances “éticas” no comportamento do que as que podem ser captadas numa foto.


Exclusivo The Conversation/P3
Craig Wight é professor de Turismo na Universidade Edinburgh Napier.
Phiona Stanley é professora de Comunicação Intercultural (Turismo e Línguas) na mesma universidade.

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