Siân Sutherland: “Alimentam-nos à força com plástico todos os dias”

Empresária inglesa esteve em Portugal, onde mostrou um novo sistema de reutilização de embalagens no Reino Unido. Para ela, o plástico não é um problema de poluição, mas de produção.

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Siân Sutherland defende uma nova economia de produtos que substituam os plásticos DR
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Siân Sutherland é co-fundadora de A Plastic Planet, uma organização determinada a fazer com que a indústria feche a torneira ao plástico e passe a apostar na produção de novos materiais que substituam os mil e um objectos feitos deste material que estão no nosso quotidiano. A empresária inglesa esteve na semana passada em Lisboa para falar sobre a reutilização do plástico num painel da 11.ª Cimeira Mundial dos Oceanos, uma conferência anual de três dias organizada pela Economist Impact, do grupo da revista inglesa The Economist.

A organização de Sutherland tem uma parceria com a Reposit, um sistema de reutilização de embalagens que acaba com o paradigma de uso único e está a ser experimentado no Reino Unido pela Marks & Spencer. Para Sutherland, esta é uma forma de diminuir a produção do plástico e evitar-se a reciclagem. “Crescemos a acreditar que é possível reciclar o plástico. É uma quimera, isso não existe”, diz ao PÚBLICO.

No ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu que o tratado do plástico tem de ficar fechado, a empresária está muito preocupada com o papel da indústria petrolífera no desenlace do documento. “A indústria dos combustíveis fósseis está muito envolvida nas negociações. Os seus lóbis estão em todas as salas. Estão sentados ao lado dos negociadores a sussurrar-lhes ao ouvido. Testemunhei isso”, diz. “Estão aterrorizados com a possibilidade de haver um limite para a produção de plástico.”

Onde estão os desafios para travar o problema do plástico? Nos consumidores, na indústria, nas políticas?
Não tem nada a ver com os consumidores. É uma forte convicção que tenho. Compramos aquilo que nos vendem. Quando as pessoas perguntam: “O que posso fazer? Reutilizo o meu saco, reutilizo o meu copo.” Eu respondo: “Óptimo!” Claro que, a um certo nível, temos uma responsabilidade individual. Mas, em última instância, com as coisas que compramos, os materiais de que as nossas roupas são feitas, os edifícios em que vivemos, alimentam-nos à força com o plástico todos os dias, e temos de estar um pouco mais zangados e ser um pouco mais resistentes a isso.

Depois, não vejo o plástico como sendo um problema de poluição, ou de resíduos, mas da indústria. É um problema de produção, de design. Por isso, para mim, as soluções têm de vir da indústria. Mas temos de fazer com que elas funcionem para a própria indústria.

Como?
Através da legislação, impostos, política orçamental, do tratado global para o plástico das Nações Unidas, para que se torne uma obrigação e não uma opção. Se ficarmos pelos compromissos de redução de plástico, e todas as empresas do planeta têm algum tipo de compromisso destes, é uma decisão voluntária e ninguém quer saber. Ninguém repara se os objectivos são ou não atingidos. E como é voluntário, não há um enquadramento jurídico. Precisamos de regras, incentivar a indústria, criar condições de concorrência equitativas. E temos de incentivar a inovação, como nunca antes se viu. O plástico é um material do século passado, é uma economia velha. Qual é a nova economia próspera pós-plástico? É aí que quero chegar.

Onde é que necessitamos desses novos materiais?
Em tudo. Onde é que há o maior uso de plástico? Nas embalagens. Embrulhamos as coisas num material que dura centenas de anos para um uso de minutos. As embalagens perfazem 40% de todo o plástico. Seria uma grande vitória se reduzíssemos drasticamente a nossa dependência do plástico nas embalagens.

A segunda coisa são os edifícios, este chão, esta mobília, a tinta na parede, tudo é plástico. Criamos edifícios muito pouco saudáveis devido à forma errada com usamos o plástico. A terceira são os têxteis, 70% de toda a nossa roupa é feita de plástico. Se olharmos para os gráficos, a produção de algodão e de lã têm uma linha estável, já a produção de poliéster está a explodir. O poliéster é o plano B, a aterragem suave para a indústria dos combustíveis fósseis. À medida que usamos mais renováveis para a energia, o que é que a indústria fóssil vai fazer com esta reserva de petróleo? Vai produzir mais plástico e o poliéster necessita de plástico maciçamente.

Acha que as pessoas estão suficientemente conscientes do impacto do plástico na saúde?
Não. Em parte, quero que as pessoas saibam. Mas, em parte, não quero. Quando não se consegue mudar o sistema, manchetes como “Saquetas de chá são cancerígenas”, “Estamos a inalar plástico”, “Há plástico no meu cérebro” só assustam as pessoas. O que quero é que a indústria sinta medo, que os Governos sintam medo, não os indivíduos. Tudo o que precisamos é de uma acção judicial, feita por um casal que não consegue conceber, ou uma criança com uma doença auto-imune, ou Alzheimer, ou obesidade, ou cancro. Todas estas coisas que são impactadas pelos produtos químicos no plástico. Precisamos de uma acção judicial e vamos começar a ver o edifício a desmoronar-se e a indústria a acordar e a perceber que temos que nos livrar do plástico.

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A empresária inglesa tem acompanhado as discussões sobre o tratado para o plástico DR

Portanto, defende a redução da produção de plástico e a entrada de novos materiais?
Vamos necessitar de uma miríade de materiais. Não vamos ter outro milagre como o plástico. Inventámos este material incrível e simplesmente usámo-lo mal. Deveríamos usá-lo para coisas que queremos que durem 500 anos. Mas usamos para embalagens, sacos de lixo. Que loucura é esta? Um dos maiores desafios é a palavra reciclagem.

Porquê?
Porque crescemos a acreditar que é possível reciclar o plástico. É uma quimera, isso não existe. Quatro por cento do plástico é reciclado nos Estados Unidos, 9% no Reino Unido, globalmente é 9%. No Reino Unido, exportamos 60% dos nossos resíduos de plástico. Se formos às aldeias da Turquia, podemos ver a nossa reciclagem ser queimada em lixeiras a céu aberto. Mesmo na indústria do plástico, há executivos de empresas das décadas de 1960, 1970 e 1980 que podem dizer ao vivo para as câmaras que inventaram a ideia da reciclagem. O plástico só se reduz ao nível da produção, nunca foi destinado para ser reciclado. Mas quando as pessoas começaram a acordar para o problema do plástico e da poluição, eles pensaram: “Dizemos simplesmente às pessoas para reciclarem o plástico.”

Como funciona o sistema Reposit?
O Reposit é um sistema que usa componentes e embalagens padronizadas entre marcas e retalhistas que competem entre si. Se comprar um champô da L’Oréal ou da Dove, ele vem na mesma embalagem padronizada e leva a etiqueta da marca. Essa embalagem não é detida pela marca, é usada pela marca. Por isso, a embalagem é um serviço. Porque é que uma marca quer pedir ao consumidor para pagar por uma embalagem de plástico, que depois se deita no caixote do lixo, e que torna o consumidor cúmplice neste processo? Em vez disso, pode adquirir uma embalagem do seu champô favorito, usá-lo, e descartá-la num dos muitos pontos de entrega, e ser recompensado por descartar ali. A embalagem não entra num sistema de reciclagem, mas de lavagem. Durante a lavagem, a etiqueta é retirada e depois volta para o sistema de embalagens e vai para a marca que necessitar delas.

Estas embalagens não precisam ser de plástico?
Na realidade, as marcas disseram que não queriam que fosse de plástico. Há duas razões: o público não gosta e o plástico é poroso. Por isso, se eu tiver um champô Dove dentro dele, mesmo que seja lavado, pode transportar um pouco da fragrância desse champô para o próximo utilizador. Já o metal é inerte, o vidro é inerte.

Este modelo já existe no Reino Unido?
Sim. Está no Marks & Spencer [cadeia de lojas britânica]. Está agora a expandir-se para muitas mais lojas. Já está a ser utilizado por marcas como a Ecova na área dos cuidados do lar. E agora será adoptado para muitos outros produtos: em alimentos, bebidas, cuidados pessoais, cuidados do lar.

Como espera que seja o crescimento deste modelo?
Necessitamos de marcas corajosas que se comprometam, porque isto só funciona em escala. Para se fornecer embalagens como um serviço e fazer a recolha, a lavagem e redistribuição, é preciso haver volume. Por isso, têm de ser as marcas favoritas ao nível mundial a aderirem, é aí que está o volume. Nesse caso, é possível fazer o mesmo preço que uma garrafa de plástico de utilização única. E não há razão para não o fazermos: menos carbono, menos recursos, menos energia, zero plástico. A percepção do público é muito positiva. Muda-se o sistema, mas continua a ser conveniente ao nível de uso, e estamos a recompensá-los.

E as marcas que já estão neste modelo, que material usam?
Metal, porque o metal pode ser usado muitas vezes e depois é reciclado. O alumínio é o material mais reciclado que temos no planeta. É um sistema de alto valor. A infra-estrutura está lá. É possível reciclar o alumínio infinitamente. Uma lata transforma-se noutra lata, ao contrário do plástico.

Porque é que é importante ter um sistema de recompensa para as pessoas?
É um incentivo para não deitarem as embalagens no lixo. E os sistemas de recompensa são muito populares. Além disso, devolve-se o champô Dove e recebe-se um crédito, que equivale a duas libras, dois euros de desconto na próxima compra de Dove. E as marcas adoram esquemas de fidelização.

Quanto será a recompensa?
Varia com o produto. Pode ser 50 cêntimos, pode ser dois euros. Depende do que as marcas e os retalhos querem fazer.

E quem paga ao consumidor?
As marcas ou as lojas. Todas fazem parte do sistema. Mas é preciso lembrar também as poupanças a longo prazo para as marcas por causa da taxa do carbono. Quando a taxa do carbono entrar em vigor, isso vai afectar os resultados das marcas. O uso único de embalagens é muito elevado em termos de custo do carbono. Por isso, se pudermos reutilizar, isso representa uma enorme redução na taxa do carbono.

No painel em que interveio, disse que há uma pequena oportunidade para se obter um grande tratado do plástico. Porquê?
O tratado do plástico é juridicamente vinculativo, pelo que todos os Estados-membros serão juridicamente obrigados a aderir a tudo o que for acordado. Normalmente, num tratado da ONU, todos os países têm de dizer sim. Mas, neste caso, ficou acordado que apenas 70% dos países têm de dizer sim. O que é muito importante, porque há países como o Irão, o Iraque, a Rússia, a Arábia Saudita e a Índia que querem um tratado de baixa ambição. Os países produtores de petróleo não querem que este tratado limite a produção de plástico.

Porquê?
Porque fabricam plástico, são países produtores de petróleo. É por isso que a indústria dos combustíveis fósseis está muito envolvida nas negociações. Os seus lóbis estão em todas as salas. Estão sentados ao lado dos negociadores a sussurrar-lhes ao ouvido. Testemunhei isso. Acho que devíamos questionar isto. O tratado da ONU deverá estar concluído até ao final deste ano. É a nossa única oportunidade de criar um tratado global, juridicamente vinculativo, que ponha fim à poluição por plásticos. E que aborde efectivamente os impactos do plástico e quem deve ser responsável por eles.

Tem ido às conversações?
Sim.

Como estão as coisas?
Neste momento, o tratado não está bem posicionado. A indústria dos combustíveis fósseis tem tido muito impacto. Fala-se muito em reciclagem. Essa nunca será a resposta. As pessoas dizem que se trata de reciclagem química: “Oh, precisamos de mais reciclagem.” Isso nunca vai acontecer. A maior parte do plástico que produzimos nem sequer é reciclável, são películas, frágeis, flexíveis, são bolsas, roupa. Neste momento, o tratado está demasiado centrado no fim da produção, nos resíduos, na devastação que causámos, no solo, no ar, nos nossos oceanos. Temos de nos afastar dessa conversa.

Ir para montante da produção...
Sim, temos de fechar a torneira. Eles estão aterrorizados com a possibilidade de haver um limite para a produção de plástico. Actualmente, o plástico deverá triplicar até 2050. Isso será daqui a 25 anos. Com a devastação que já estamos a falar hoje, o facto de haver plástico no ar cada vez que enchemos os pulmões e nos nossos bebés... Já temos ciência sobre o impacto na saúde humana, já para não falar do resto do planeta. E ainda assim o plástico vai triplicar? Não comigo a ver.

Como é que se assegura que os novos materiais que vão substituir o plástico não serão tóxicos?
Temos de testar tudo. Alguns dos cientistas com quem trabalhamos, a primeira pergunta que fazem é: “Testou o novo material?” Porque muitas vezes o que está em causa não é a origem do material, mas sim os produtos químicos que adicionamos.

Mas que matéria-prima é que se vai buscar, a madeira?
O material mais abundante no planeta é a celulose. O que se pode fazer com isto? Com que é que a posso misturar? A celulose é um nutriente da natureza. A natureza é sempre circular, não há desperdício, tudo acaba por ser um nutriente para a fase seguinte. O que é importante são os materiais que fabricamos, retiramo-los da natureza como nutrientes, mas temos de garantir que mantemos o seu estatuto de nutrientes. Podemos cozê-los, moldá-los, dar-lhes forma, mas têm de regressar à natureza ainda no estado de nutrientes. Não devemos quebrar a espinha dorsal química, porque assim a natureza não os reconhece.

A outra área importante é como podemos usar menos. Actualmente, utilizamos recursos de dois planetas por ano e devolvemos milhares de milhões de toneladas de resíduos [à Terra]. Como é que podemos utilizar menos recursos? E como é que podemos utilizar cada vez mais as coisas? É aí que entram sistemas como o Reposit, em que pegamos num material e usamo-lo uma e outra e outra vez.

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