Zangados, demasiado zangados

Estamos a falhar como civilização.

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Andamos zangados. Zangados com os políticos, com as organizações, com o trabalho, com os vizinhos do lado e com os imigrantes – que, entretanto, já são vizinhos do lado. Até com os factos nos zangamos, porque não confirmam as nossas ideias feitas. Daí fugirmos para as redes sociais para sobretudo dizer mal de tudo onde aqueles que cada vez mais reinam nos seguem os passos e indicam o caminho que querem que sigamos. E ali, no seu interior tudo é emoção: likes, ira, gargalhadas ou “adoro”.

Para sobreviverem, os meios de comunicação social acabam, por vezes, a fazer o mesmo: a entreter-nos, com interpretações exaustivas de informação que, essa sim e não as interpretações, é contabilizada ao segundo – e recordo-me, para o efeito, dos debates políticos. Chegamos ao dia da reflexão que precede o voto e raciocinamos com parangonas, sem justificação sólida, liquidificando as nossas conclusões. O que de mais importante há para a nossa vida não é sequer merecedor de tempo na economia devoradora da atenção. Bastam-nos os títulos dos jornais. O resto, dizemos, é “mais do mesmo”.

No meio de tudo isto, com informação compreensivelmente empobrecida e toda a liberdade para desinformadamente destilar veneno, “publicamos” a toda a hora. Falta-nos um virtuoso meio-termo na gestão do que temos à mão, capaz de evitar o radicalismo. Alimentamos assim um novo cenário. Existimos nós e do outro lado o “sistema”. Que é corrupto e nós impolutos. Tornámo-nos insolitamente santos morais.

Queremos tudo porque supostamente nada temos. Queremos um novo 25 de Abril. Queremos equivaler o 25 de Novembro ao 25 de Abril. Queremos fazer dos períodos de terror que se seguiram às revoluções – e penso não apenas em Portugal, mas até nos excessos pós-Revolução Francesa , um terror maior do que aquele que lhes preexistia. Queremos revisitar permanentemente a História, como se aqueles que no momento a registaram tivessem em mente mentir aos que se seguem. E os negacionistas são os outros.

Falamos de desobediência civil como se ela não fosse uma figura-limite na contestação. Como se ela não tivesse consequências a médio prazo, até para a própria democracia, que pode resvalar para uma anarquia. Queremos novos heróis, mas, por favor, seja um qualquer outro que não eu o mártir – e nem nos apercebemos que um colectivo pode ser tanto ou mais esmagador porque inviabiliza o dia-a-dia de todos.

Quem luta, lembrando que “a luta continua”, porque de facto “quem adormece em democracia, acorda em ditadura”, é imediatamente rotulado como já parte do dito “sistema”. Dividimo-nos em movimentos esparsos e depois reclamamos dos outros, que sempre foram unidade, essa unidade que sempre foram. O individualismo reina, e por isso dividimo-nos, dizendo que é o poder e somente ele quem “divide para reinar”. Nem nos apercebemos que, não obstante a nossa boa vontade para resolver problemas, não nos integramos desinteressadamente. Confiando, simplesmente. Porque, pensamos, os que já cá andam nada sabem e nada fazem. Somos nós os donos da verdade. E santos morais, uma vez mais.

Emergem, entretanto, os vampiros da zanga. Que a alimentam e se riem à distância para depois a sugarem, criando exércitos que nos imporão uma obediência brutal – e aí sim, retornarão as figuras-limite da luta, como a de Salgueiro Maia que nos lembrou que “às vezes – e permito-me sublinhar este ‘às vezes’ – é preciso desobedecer”.

Parece, pois, que nada acontece por acaso. Estamos muito provavelmente a perder a razão. E se a perdemos é porque já a tivemos. Precisamos de aprender a viver com parte do que já temos, porque nem tudo está mal. Precisamos de nos zangar menos e aceitar mais, lutando contra factos de injustiça e não por preconceitos que a distorcem. Precisamos de lembrar aqueles que hoje escolhem o radicalismo que amanhã estarão eles na guerra – e já se fala novamente no serviço militar obrigatório. Não, não estamos no final da História, como Fukuyama julgou depois da suposta unificação do mundo com a queda do Muro de Berlim. Pelo contrário. Estamos a falhar como civilização.

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