Nuno Júdice (1949-2024), poeta de um eterno retorno

A sua estreia como poeta deu-se em 1972, com um livro que tinha um título programático, A Noção de Poema.

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Nuno Júdice Bruno Simões Castanheira
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Nuno Júdice morreu este domingo, vítima de cancro. A notícia foi confirmada ao PÚBLICO por fonte próxima da família. O poeta – que foi também ensaísta, romancista e praticou uma multiplicidade de géneros literários, para além de ter sido professor universitário e, desde há alguns anos, director da revista Colóquio/Letras – nasceu em 1949, em Mexilhoeira Grande, Portimão, no Algarve.

A sua estreia como poeta deu-se em 1972, com um livro que tinha um título programático, A Noção de Poema. Era um livro que, logo no título, indicava uma atitude poética muito auto-reflexiva, integrando as próprias questões internas da poesia. Havia nesse livro uma atitude próxima de uma neo-vanguarda, de que o poeta se distanciará. Do que ele nunca se distanciou foi de uma relação muito forte com a história literária, muito especialmente com o romantismo. Foi, por isso, um poeta impregnado de literatura e poesia, às vezes até a um limite em que o poético se manifesta em estado de proliferação.

Sendo Nuno Júdice um nome fundamental da sua geração, a sua obra mais recente esteve longe de obter o consenso junto da mais nova geração de poetas. Atraiu, por isso, algumas manifestações polémicas. Entre os poetas contemporâneos portugueses, Júdice é um dos mais traduzidos, tendo alcançado uma notável difusão no estrangeiro.

Da sua extensíssima obra poética, aquela que irá ser recordada como um marco importante na poesia portuguesa não é certamente a poesia exasperada dos seus últimos livros, mas aquela, muito mais impessoal, que pode ser sintetizada num aforismo que surge num dos seus versos: “A poesia é o teatro”. Um teatro de sombras e de máscaras (retomando a tradição modernista da poesia), num jogo que implicava a sua própria crítica. Como que situando-se no exterior do seu discurso, com uma atitude às vezes lúdica, o poeta assumia o lugar de uma terceira pessoa que se inventa a si mesma e assiste ao espectáculo da sua própria mistificação. Por isso, essa poesia mais antiga de Nuno Júdice era habitada por uma aura de canto iluminado (muita vezes com uma voz eminentemente elegíaca e muito devedora do romantismo) que procura a essencialidade em qualquer contingência e a eternidade em cada instante. Da referência romântica guardavam os seus poemas um tom, uma música, um particular sentimento da natureza.

Na sua obra mais recente, o que triunfa é outra coisa. Sem expulsar completamente a tendência reflexiva, ela tornou-se muito permeável a investimentos de outra ordem: subjectivos, ficcionais, longe da impessoalidade que marcou a sua primeira fase, admitindo aliás uma muito maior abertura à circunstância, ao episódio imediato, a uma poesia muito menos marcada pela tensão interna e pela questionação de si mesma.

A história da poesia

A obra completa de Nuno Júdice é constituída por quase cinquenta títulos de poesia, duas dezenas de livros de ficção, mais de uma dezena de livros de ensaio literário e ainda quatro livros de teatro. Foi um dos escritores mais prolíficos da literatura portuguesa contemporânea - a sua estreia com A Noção de Poema é um marco importante na poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Três anos depois, O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1975) prolongava de certo modo a mesma atitude poética auto-reflexiva, que adquire uma dimensão muito mais elegíaca e em diálogo com a tradição romântica em títulos como Um Canto na Espessura do Tempo (1992), Meditação Sobre Ruínas (1995, Prémio APE) e O Movimento do Mundo (1996).

O seu ensaísmo literário foi inaugurado em 1986 com A Era de Orpheu, livro no qual a poesia moderna e a história da poesia ocupam o lugar principal. A questão da crítica literária e as condições do seu exercício mereceram-lhe uma intervenção num livro de 2010, O ABC da Crítica. A formação universitária de Nuno Júdice (Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa) e a longa experiência de professor de literatura francesa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa não são nada estranhas às suas afinidades poéticas e às suas incursões no campo da teoria literária.

Entre 1997 e 2004, o poeta e ensaísta exerceu ainda funções diplomáticas em Paris (conselheiro cultural da Embaixada de Portugal e director do Instituto Camões, cargo no qual substituiu Eduardo Prado Coelho). Esse lugar permitiu-lhe um contacto alargado com importantes poetas contemporâneos, de muitas latitudes: a sua poesia alcançou um circuito cosmopolita e foi amplamente traduzida. Uma das traduções mais significativas foi uma antologia publicada na prestigiada colecção Poésie, da editora Gallimard.

Além de conselheiro cultural, Nuno Júdice comissariou ainda a área de Literatura da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e da Feira do Livro de Frankfurt, que em 1997 foi dedicada a Portugal. Para além de ter sido, desde 2009, director da revista Colóquio/Letras, depois de ter dirigido, entre 1996 e 1999, a revista Tabacaria, editada pela Casa Fernando Pessoa. Também pelas funções que exerceu no domínio da política cultural, Nuno Júdice tornou-se uma figura importante não apenas pela sua obra literária.

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