O Estado bélico devora o Estado social

A história prova que a melhor forma de resolver os problemas na ordem internacional é a tiro e à bomba. Alguém duvida? E haverá algo que se compare à beleza da guerra?

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Já há quem defenda abertamente que Portugal tem de “abrir os cordões à bolsa” para investir na defesa e que vai ter de optar entre Defesa ou SNS, entre defesa ou escola pública, enfim, entre defesa ou Estado social (entre warfare state ou welfare state).

O modelo social europeu, a pretexto da guerra na Ucrânia, está, portanto, em vias de desmantelamento. Agora que o comunismo já deixou de ser há décadas uma ameaça para a Europa Ocidental, para quê carregar esse fardo da redistribuição social dos rendimentos que tanto lesa os maiores beneficiários da agenda neoliberal, os pobres milionários acabrunhados pelos impostos? Basta de tanto sofrer! Há que regressar à velha Europa: substituir o caduco Estado social pelo Estado bélico, pois é preciso dar dinheiro a ganhar aos fabricantes, negociantes e traficantes de armas, com a vantagem de isso ter um enorme “efeito multiplicador”. Ao mesmo tempo que gera novos milionários (o que é ótimo para “a criação de riqueza”), gera pleno emprego na retaguarda e na frente de combate (as baixas nem contam para o desemprego).

Entretanto, sem Estado social, acaba-se o escândalo do aumento constante da esperança de vida e os pensionistas ficam à mercê dos fundos de investimento, o que só lhes faz bem (a ambos, mas sobretudo a estes últimos, é claro).

A Europa não se pode permitir certos luxos. Um deles é a paz. Estava em paz há demasiado tempo. Adormecera na cooperação económica, energética e cultural com os Estados vizinhos. Tentava resolver os conflitos pela via diplomática e da negociação. Finalmente despertou de novo para o seu destino de sempre: a guerra.

A história prova que a melhor forma de resolver os problemas na ordem internacional é a tiro e à bomba. Alguém duvida? E haverá algo que se compare à beleza da guerra? Leiam o manifesto do Marinetti! É muito atual. A Comissão Europeia e os Estados-membros podiam receitá-lo como cartilha para ser distribuído pelas escolas.

Além disso, uma guerra na Europa fará recrudescer os nacionalismos, o que é bom para todos, pois já estávamos fartos da livre circulação no espaço Schengen, e era tempo de aprendermos com o Reino Unido. De resto, temos a NATO. Para que precisamos da União Europeia? Só serve para desperdiçar recursos e irritar os agricultores.

Uma Europa militarista educará os seus cidadãos no manejo de armas e, tolerará, como já acontece em alguns países, que estes se treinem a matar-se uns aos outros, em caso de querelas, acidente, loucura, autodefesa ou “justiça” pelas próprias mãos. É um mal menor.

Nenhum governo europeu foi eleito para fazer a guerra. Isso não consta, até hoje de qualquer programa eleitoral. Mas, como é óbvio, a guerra é um must que dispensa o sufrágio eleitoral ou o referendo. Por isso é que, em tempo de guerra, não se limpam armas (isto é, não há eleições). É da natureza da coisa (Natur der Sache). Escapa à democracia. Essa é também a razão por que as despesas com a guerra não contam para o défice! Não há limite de 3%. Veja-se o exemplo dos Estados Unidos: não acabou com a fome e a pobreza, não tem um sistema de saúde comparável com o SNS, investe pouco em infraestruturas, mas o défice do orçamento federal com a defesa é de triliões de dólares!

Para mais, se a guerra for nuclear, fica tudo resolvido de uma assentada. Acabou-se o Antropoceno, entramos numa era pós-humana e a natureza regenera-se. Só é pena que não fique cá ninguém para testemunhá-lo.

Que desavisado foi o Presidente Kennedy em 1962, ao fazer prevalecer o princípio da segurança recíproca sobre a opção pela guerra e por uma (incerta) vitória militar! Comparado com Macron e Von der Leyen, era um homem de coragem, como diria o Papa. No ano seguinte, liquidaram-no a tiro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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