Reconheço que fico bem de saltos altos. Eu e provavelmente todas as mulheres. Parecemos mais altas, as nossas pernas alongam-se, a nossa postura fica mais direita, a barriga encolhe, as omoplatas quase que se juntam, obrigando o peito a erguer-se... Em suma, todo o conjunto é elegante. Então, porque não andamos sempre de saltos altos? Porque não são confortáveis, porque magoam, porque nos dão cabo dos pés, porque, a longo prazo, dão-nos mesmo cabo dos pés e da saúde, afinal, não é natural andarmos em pontas e fazermos toda a pressão apenas numa parte do pé. Porque a calçada portuguesa é perigosa até para quem anda de saltos rasos, porque é impossível descer rapidamente as escadas quando o metro ou o comboio já está na plataforma ou fazer um último esforço para apanhar o autocarro. Por isso, abraçámos com tanta facilidade a moda das sapatilhas e parecemos não querer largá-la.

Os saltos altos estão para muitas de nós como o pé de lótus estava para as chinesas até ter chegado a Revolução Cultural de Mao. Também a elas lhes ficava bem andar com passinhos periclitantes e aparentemente graciosos. Muitas coisas na nossa vida pessoal e social dependem do "ficar bem". Ficam-nos bem os saltos, mesmo que não sejam práticos e magoem. Fica-nos bem o cabelo pintado, a maquilhagem e os produtos de pele que evitam o envelhecimento porque nos fica mal envelhecermos. Fica-nos bem a ida ao ginásio, assim como nos fica bem dizer que é porque o exercício é bom para a saúde, quando intimamente pensamos na barriga flácida ou no músculo do adeus que obedece à lei da gravidade e está completamente caído. 

Fica-nos bem gastar rios de dinheiro com inúmeros produtos, da depilação à perfumaria — onde a oferta começa no supermercado e acaba na loja de luxo, com uma variedade infinita, toda centrada nas aparentes necessidades das mulheres —, apesar de ganharmos, em média, menos 13,3% do que os homens que, aparentemente não têm as mesmas necessidades que nós (embora a indústria e o seu marketing comecem a virar-se para eles).

No âmbito do tema do 34.º aniversário do PÚBLICO, "Ser Mulher em Liberdade", fomos ouvir uma série de especialistas, da economia ao marketing, passando pela indústria, sobre a taxa rosa, que não é um imposto real, mas que se traduz em preços mais altos para as mulheres, para produtos com as mesmas características que os feitos para homens. O exemplo da lâmina de barbear é o mais comum.

Os comentários de alguns leitores a este texto revelam a falta de compreensão para com o que é exigido às mulheres e não aos homens. Ao lê-los, lembrei-me daquele filme de sábado à tarde com Mel Gibson e Helen Hunt, What Women Want, em que o primeiro ganha o dom de ouvir o pensamento das mulheres e, só no final, claro, revela solidariedade e compreensão com as mulheres. Pensei que falta aos homens acordarem de manhã e verem-se ao espelho como nós nos vemos; andarem todo o dia de saltos altos; ouvirem as bocas, a que eles chamam piropos e acham que não afectam; ou sentirem a insegurança e o medo que a autora brasileira Joanna Moura conta na crónica Que merda é ser mulher. Falta-lhes sentir a pressão de ter de estar sempre bem e corresponder às expectativas, como escreve Monica Hesse sobre a princesa de Gales. À mulher que pareceu sempre bem, horas depois do nascimento de cada um dos três filhos, não se admite que possa estar ausente da vida pública para se restabelecer de uma cirurgia abdominal. Por que exerce Kate Middleton todo este fascínio?

Ainda sobre a incompreensão masculina e, neste caso, dos governos que são, na sua maioria compostos por homens, há um tema (entre muitos) que parece um mistério para eles: a pobreza menstrual. O facto de os produtos de higiene íntima serem tão caros que há raparigas e mulheres que durante a menstruação faltam à escola e ao trabalho, respectivamente. A Escócia, há quatro anos, foi o primeiro país a tornar gratuitos estes produtos, então, era primeira-ministra Nicola Sturgeon. A incompreensão chega até aos sintomas, o médico brasileiro Drauzio Varella escreve sobre as dores, o mal-estar e pergunta como seria se os homens menstruassem, se aceitariam ouvir "É coisa de homem", como as mulheres ouvem, numa clara desvalorização do que sentem.

No romance Olive Kiterridge, da norte-americana Elizabeth Strout, há uma personagem que trabalhou num gabinete de enfermagem numa escola e recorda as raparigas que lhe batiam à porta: "Entravam no seu gabinete queixando-se de dores horríveis de barriga, deitavam-se no sofá com o rosto macilento e os lábios secos de dor. 'O meu pai diz que é tudo psicológico', dissera-lhe mais do que uma rapariga e, ai, ai, ai, isso partia-lhe o coração. Era tão solitário ser rapariga!"

Na sexta-feira, morreu Iris Apfel, uma empresária da indústria têxtil, uma decoradora de interiores, uma mulher que se tornou conhecida pela sua original forma de vestir. Apfel tinha 102 anos e, nas redes sociais, já tinha festejado o meio ano que passara para chegar aos 103. Faria anos a 29 de Agosto. Havia uma confiança que muitos de nós desejamos. Dizia Iris Apfel que não há dinheiro que compre o estilo: "É apenas instintivo... Primeiro temos de aprender quem somos, e isso é doloroso."

Sem dúvida que o "conhece-te a ti mesmo", tal como a incompreensão do outro, dói, mas traz-nos a confiança para descalçar os saltos altos, calçar as sapatilhas, endireitar as costas e sair com confiança. 

Boa semana!

PS: Duas coisas:
1) neste dia 5 de Março,os leitores estão convidados a virem até Lisboa, à Culturgest, para a Conferência PÚBLICO, sobre mulheres. Haverá um painel, às 11h40, sobre Educação, género e reprodução de estereótipos, eu lá estarei a moderar a conversa com os professores Virgínia Ferreira, Paula Cardoso e João Jaime.
2) No próximo domingo é dia de eleições legislativas, vá votar.