“Alta Corrosão”

A correlação de forças entre “patrão” e empregado na SIC torna virtualmente impossível declinar um convite de Daniel Oliveira para ir ao Alta Definição “estar como se é.”

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Recentemente, gerou alguma controvérsia a abordagem humorístico-jocosa de Ricardo Araújo Pereira (R.A.P.) à participação de Pedro Nuno Santos (P.N.S.) no programa Alta Definição da SIC. Maquilhado de modo a hiperbolizar na sua própria face a prestação sentida do secretário-geral do PS, por gingos e ditos putativamente miméticos o (re)conhecido humorista reduziu essa prestação à condição (pouco estimável) de rábula eleitoralista. Houve quem se apressasse a selar a arte demolidora do R.A.P. como canalhice. Como seria possível sujeitar a sátira cáustica um homem exposto na sua humanidade comum? Também houve quem apontasse baterias a P.N.S.: “pôs-se a jeito”, garantiram, quem o mandou ir ao Alta Definição fazer figuras literalmente mortais que ninguém lhe encomendou?

Seja como for, por entre os pingos da chuva passou o próprio Alta Definição. Ora, vale a pena deslocar a antena para, por momentos, nos focarmos no conteúdo deste programa televisivo, antes de tornarmos à questão dos “pecados capitais” individuais que terá suscitado.

O Alta Definição é um programa "inofensivo" de entretenimento da SIC em que convidados, quase sempre famosos da casa, patenteiam a sua vida privada expondo-se como sujeitos de emoções genuínas. Sugestivamente, o mote do programa é “estou como sou.” Pouco importa se se é como se diz que se é ou se se encena mais uma personagem. A marca d’água da “exibição” é a transparência, a autenticidade. Dores, traumas e segredos emocionalmente vincados, verdadeiros e profundos, partilhados em registo de confidência ao mundo, a ser tanto mais creditada quanto mais credivelmente se empenhar a fragilidade da condição humana.

Nada de muito importante me incomoda neste alarde de ser vulnerável. Ou, remate, na sua mercadorização, pois é disso mesmo que se trata. Num mundo em que a expansão capitalista não parece ter limites, as emoções e os sentimentos, bons e maus, são bens como quaisquer outros. Por que razão moral deveriam ficar a coberto de rendibilização económica?

O caso muda rapidamente de figura quando se constata que a criatura que emparelha nas confissões, apresentando-se como entrevistador compreensivo e empático, mas também contido, sóbrio, quase circunspecto, fardo justamente imposto pelo respeito da gramática da confessionalidade, é o diretor-geral de entretenimento da Impresa e diretor de programas da SIC, Daniel Oliveira.

Temos, portanto, que, frente-a-frente, para produzir a portentosa singularidade humana, estão "patrão" e empregado. Isto é, temos um programa em que, por norma, indivíduos sob contrato com a estação de que esse programa é um emblema abrem a alma e o coração confidenciando circunstâncias e episódios da vida privada ao seu "patrão."

Dir-se-á que o fazem de modo livre, eventualmente obedecendo a conjeturas e cálculos de carreira. Mas será que podemos pôr seriamente esta hipótese em cima da mesa quando se sabe que a maioria das pessoas que vão ao Alta Definição depende largamente da SIC para trabalhar e ser reconhecida, quer dizer: para preservar o seu capital mediático no quadro de um mercado de atores e entertainers famosos pautado pela concorrência feroz, pela volatilidade e pela precaridade dos vínculos laborais?

Seja ou não um requisito contratual (cenário que não afasto), dispor-se a participar em iniciativas e eventos (não exclusivamente “programáticos”) que potenciem os interesses comerciais da entidade empregadora, a verdade é que não é preciso ter dois dedos de testa para entender que, objetivamente, a correlação de forças entre "patrão" e empregado na SIC torna virtualmente impossível declinar um convite de Daniel Oliveira para ir ao Alta Definição “estar como se é.” À maneira de "I'll make him an offer he can't refuse," fórmula “famosa” que o primeiro Godfather legou.

Isto é, no mínimo, perverso; mas provavelmente é mesmo o que tem todo o ar de ser: uma forma doce, mas nem por isso menos criticável, de assédio moral.

Encarado por este prisma, enquanto o “pecado” de R.A.P. se extingue, o de P.N.S. ao mesmo tempo modifica-se e amplia-se. Com efeito, a “sinopse” do ator eleitoral eventualmente com pouca queda para a representação é substituída pela do dirigente do partido de esquerda que se torna objetivamente cúmplice de um exercício (ilegítimo) de jugo patronal. Não abona nada um homem que – sem pensar duas vezes – passa a vida a sobrevalorizar a ação (de esquerda) em detrimento do discurso.

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