A destruição de universidades na Faixa de Gaza

A universidade portuguesa parece consumir grande parte da energia na resposta ao permanente rateio das fontes de financiamento, esquecendo demasiadas vezes as suas responsabilidades cívicas.

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A tempestade de destruição e morte que se abateu sobre a Faixa de Gaza, em retaliação pelo trágico e condenável ataque do Hamas no passado dia 7 de outubro de 2023, causou vítimas infindáveis em Gaza, mas também um pouco por todo o mundo. Em Portugal, uma das vítimas mais notórias do conflito foi a universidade que, ao contrário do que vem sucedendo na Europa, nas Américas e nos restantes continentes, se manteve silenciosa perante esta última e devastadora manifestação de um conflito tão complexo quanto longo.

Sinal dos tempos, porventura, a universidade portuguesa parece consumir grande parte da sua energia na resposta ao permanente rateio das fontes de financiamento, esquecendo demasiadas vezes as suas responsabilidades cívicas e o seu compromisso para com a Humanidade, na sua aceção mais lata. Para quê, de facto, fazer da autonomia universitária um cavalo de batalha político se, quando os eventos do mundo caótico em que vivemos neste início de século XXI exigem que essa autonomia se traduza em desempenho cívico, a universidade fica retraída e calada, permitindo mesmo que essa sua atitude seja interpretada como indiferença?

Acompanhamos a reivindicação, pelo povo palestino, do direito a ter uma pátria territorial, sem com isso colocar, contudo, em causa a existência do Estado de Israel. Por isso mesmo, a desproporção da resposta ao atentado de 7 outubro é particularmente perturbadora, já que ela corrói as razões históricas da simpatia com que os povos da Europa acolheram a aspiração do povo judaico a ter também ele uma pátria, aspiração que o Holocausto viria a legitimar de novo e com redobrada intensidade.

Para quem, como nós, entende que, justamente por toda essa complexidade histórica, o conflito não se limita a ser, como muitos simplisticamente agora defendem, um derradeiro avatar do colonialismo europeu, é penoso constatar que o atual governo de Israel se comporta, sob a governação de Benjamin Netanyahu, como um Estado menos preocupado com a Justiça e o Direito, que aliás invocou logo após o massacre de 7 de outubro como fundamento do seu direito a retaliar e a resgatar os reféns, do que com a aniquilação de um povo com o qual está destinado a coabitar e conviver.

É hoje evidente que toda a infraestrutura de Gaza foi atacada, nalguns casos de forma cirúrgica, mas em muitos outros casos de forma ostensivamente arrasadora. Redes viárias e de distribuição, mas também hospitais ou escolas, bem como edifícios de organizações internacionais, a começar pela ONU, nada foi preservado das bombas. O mesmo destino sofreram as universidades, não havendo, de acordo com os observadores e a imprensa generalista, mas também com a imprensa que tem como objeto o mundo universitário internacional, nenhuma universidade em Gaza que não tenha sido de alguma forma danificada ou destruída. Também a este propósito, temos de confessar a nossa surpresa e mesmo o nosso choque com o silêncio das universidades portuguesas, que se abstiveram até hoje de se pronunciar sobre estes acontecimentos, cuja violência põe em causa as próprias ideias de fraternidade e liberdade sobre as quais se edificou historicamente a universidade.

Muito recentemente, como é sabido, o próprio Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, impôs medidas a Israel para aliviar a situação de desastre humanitário de Gaza (uma situação de fome catastrófica, de acordo com a ONU), o que implica não cometer atos com a intenção de destruir, em parte ou no todo, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal, atos que poderão colocar Israel sob a alçada da convenção sobre o genocídio. Neste contexto, é com perplexidade que se assiste ao silêncio das universidades portuguesas sobre eventos que, entre muitas outras coisas, levaram à destruição de universidades e à morte de estudantes, professores e funcionários.

Enquanto cidadãos, mas também enquanto universitários, manifestamos, pois, a nossa solidariedade para com as universidades da Faixa de Gaza bombardeadas pelo exército israelita, em particular a Universidade Islâmica de Gaza e a Universidade Al-Azhar, as mais afetadas pela destruição. Sejam quais forem as razões jurídicas ou militares invocadas para tal, permanece para nós inaceitável a ideia de que escolas e universidades possam ser consideradas alvos militares legítimos. Mas sobretudo, recusamo-nos a aceitar que o caminho para a paz passe pelo amontoar de ruínas, cadáveres e traumas a que estamos a assistir.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

Alexandre Franco de Sá, Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro C. Carvalho, Sérgio Dias Branco - Docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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