Alagoas Brancas: “Nem um metro cúbico de cimento” onde uma estrela rara flutua nas águas

“Nem um metro cúbico de cimento será colocado aqui”, garantiu o autarca Luís Encarnação ao grupo de especialistas vindos das universidades do Algarve, Coimbra e Lisboa para visitar Alagoas Brancas.

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Um grupo de cientistas de várias universidades visitou este mês a zona húmida de Alagoas Brancas recolhendo algumas amostras Ana Costa/ DR
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Um grupo de cientistas de várias universidades visitou este mês a zona húmida de Alagoas Brancas recolhendo algumas amostras Ana Costa/DR
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Um grupo de cientistas de várias universidades visitou este mês a zona húmida de Alagoas Brancas recolhendo algumas amostras Ana Costa/DR
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No passado fim-de-semana, um grupo de investigadores e ambientalistas visitou o lugar especial de nove hectares no Algarve que esteve, há cerca de um ano, à beira de um atentado que o poderia ter transformado num retail park. “Temos aqui especialistas em botânica, insectos e charcos”, anuncia Ana Marta Costa, bióloga, do movimento cívico Salvar as Alagoas Brancas. Duas dezenas de investigadores avançam para o terreno, numa visita acompanhada pelo autarca de Lagoa, Luís Encarnação.

O tapete de folhas e flores brancas flutuantes dá nome ao espaço Alagoas Brancas. Mas o nome não diz tudo. Quem chega na Primavera – que se aproxima, sem paragem no Inverno depara-se com um postal ilustrado, ao vivo e a cores. Um bando de centenas de íbis-pretos dá as boas vindas ao turista acidental. As aparências, porém, iludem.

A expansão urbanística da cidade de Lagoa – à semelhança do que aconteceu noutras zonas do litoral algarvio deixou esta zona húmida ensanduichada entre um parque de feiras e exposições e uma zona comercial. O caiaque desliza pelo pequeno lago, por entre os ranúnculos aquáticos ou borboletas-de-água.

“Espero que hoje seja um dia memorável”, acrescenta Judite Fernandes, especialista em águas subterrâneas. “Deu-nos muito trabalho a demonstrar que a água da lagoa estava ao mesmo nível da zona freática envolvente.” O papel das organizações não governamentais (ONG), admite, foi determinante para inverter o processo do “betonização” em marcha acelerada.

“Continuar a ter turistas no Verão, sem espaços como este, torna-se assaz complicado”, observa Paulo Maio, engenheiro florestal, defensor das Alagoas Brancas. “Vim de Lisboa, resido no Algarve.” Os algarvios, diz, “não conhecem a riqueza ambiental da sua terra, e os portugueses que só vêm de férias para ir à praia também passam ao lado” da realidade, construída de muitos mosaicos paisagísticos, do litoral ao interior.

Os montes de terra e entulho, empurrados pelas máquinas do promotor imobiliário que pretendia enterrar lagoas e charcos, para construir um retail park, permanecem no sítio. Um plano de urbanização, de há 14 anos ainda em vigor –, permitia a conversão de uma zona húmida em espaço urbano.

“A nossa ideia [agora] é que isto se transforme num parque natural urbano que preserve as espécies que aqui estão, este é o nosso compromisso.” O “compromisso”, explica o presidente da câmara, Luís Encarnação, foi assumido com o Fundo Ambiental entidade que transferiu 3,67 milhões para autarquia – para comprar o terreno ao proprietário, a quem a câmara conferiu direitos urbanísticos adquiridos em zona de Reserva Ecológica Nacional (REN).

“Não se pode resumir um sítio de importância mundial, como este, a um lugar onde se mostra um laguinho à população”, alerta Jael Palhas, investigador do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra. Os valores ambientais, enfatiza, vão para além daquilo que a vista alcança. Na água flutua a estrela-de-água (Damasonium bourgae), planta rara classificada como “criticamente em perigo”. O caiaque leva o investigador para o interior da lagoa.

Udo Schwarzer, membro do International Union for Conservation of Nature (IUCN), aproxima-se. O que é único neste sítio, descreve, é a combinação de plantas: “Esta vegetação é muito rara a nível mundial.” O sítio mais próximo conhecido, diz, fica no Coto Doñana em Espanha”.

O doutorando Jael Palhas elogia o saber do especialista: “Eu sou o aprendiz.” A comunidade de plantas efémeras e hidrófilas, em zonas húmidas como as que se encontram neste sítio, prossegue Schwarzer, só tem paralelo na ilha da Sicília (região de Gela), no vale do Guadalquivir no Parque Nacional Doñana e na Tunísia. No ano passado, foi descoberto o Damasonium nas Alagoas Brancas, o que fez despertar a comunidade científica internacional.

Cientistas recolheram amostras em Alagoas Brancas Ana Costa / DR
Cientistas recolheram amostras em Alagoas Brancas Ana Costa / DR
Cientistas recolheram amostras em Alagoas Brancas Ana Costa / DR
Alagoas Brancas, zona humida de grande importância do ponto de vista da biodiversidade e tambem enquanto bacia de retenção das aguas acabou por ser protegida Guillermo Vidal
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Cientistas recolheram amostras em Alagoas Brancas Ana Costa / DR

Compra em suspenso

Na próxima reunião da assembleia municipal, dia 28 de Fevereiro, o executivo autárquico leva à discussão e aprovação o contrato de promessa de compra e venda das Alagoas seis hectares de áreas inundáveis, mais três hectares com um loteamento aprovado. Em 2009, um promotor imobiliário – Edifícios Atlântico, SA obteve viabilidade para construir dez lotes, numa área com habitat abrangido pela Rede Natura 2000. Por isso, quando a câmara chamou o investidor para negociar a aquisição do espaço, logo para início de conversa, lembra Luís Encarnação, pediram 40 milhões de euros. O valor acordado ficou-se pelos 3,67 milhões.

“Mas temos ainda de ter o visto do Tribunal de Contas”, advertiu, lembrando que a escritura de aquisição ainda não se efectuou. Em caso de incumprimento pelo município, diz o protocolo assinado com a administração central, “o Fundo [Ambiental] pode exigir a devolução total ou parcial das verbas transferidas”.

No total, prevê-se um investimento de 4,4 milhões a concretizar até 2025. A verba para a elaboração do projecto técnico é de 60 mil euros. À construção do parque estão destinados 465 mil euros. Os ambientalistas têm vindo a reclamar uma avaliação de impacte ambiental (AIA), mas o Tribunal Central Administrativo do Sul considerou “insuficiente o estudo [da Almargem] para decidir a favor da AIA.

Porém, a descoberta da “estrela-de-água” ou “damasónio” veio introduzir uma mais-valia que não deverá passar despercebida às autoridades ambientais. O principal obstáculo, diz o presidente da câmara, foi afastado. “Chegámos a acordo com o proprietário.” As aves, ameaçadas pela alteração do habitat (140 espécies referenciadas), não falam, mas estarão gratas.

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Terrenos das Alagoas Brancas foram adquiridos pela empresa Edificios Atlantico, S.A. com o objectivo de construir ali um parque comercial, projecto aprovado em Julho de 2013 Guillermo Vidal

Um palco para o espectáculo da natureza

A criação do Parque Natural da cidade de Lagoa, como refere do protocolo firmado entre o Fundo Ambiental e a câmara, passa pela aquisição de quatro prédios rústicos à sociedade Edifícios Atlântico, somando uma área total superior a nove hectares. “Nem um metro cúbico de cimento será colocado aqui”, afirmou ao PÚBLICO Luís Encarnação, na altura em que recebia o grupo de especialistas, para mais uma jornada de trabalho, vindos das universidades do Algarve, Coimbra e Lisboa.

“Somos todos uns refugiados climáticos”, salienta Judite Fernandes, para ilustrar as transformações que se estão verificar, especialmente nas terras do Sul. “Vou soltar esta abelha gigante”, diz o investigador do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal Albano Soares, também colaborador externo da Faculdade de Ciências de Lisboa que se deslocou ao Algarve. O insecto de dimensões fora do comum não constituía surpresa, por já ser conhecido. A curiosidade residia num outro exemplar, de dimensões minúsculas. “Vou ter de estudar e analisar, no laboratório.”

A revisão do Director Municipal (PDM) de Lagoa foi aprovada em 2021. Um ano depois, um promotor imobiliário obtinha alvará para expandir a zona comercial em três hectares, alegando antigos direitos adquiridos. “Temos um plano, mas queremos ouvir os especialistas para nos dizerem o que é mais adequado para este sítio”, garantiu o autarca socialista.

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Guillermo Vidal/ Arquivo

As boas intenções merecem um comentário de Judite Fernandes. “Toda esta gente veio aqui, de uma forma graciosa, dar o pontapé de saída para os levantamentos que são necessários fazer [para elaborar o projecto técnico]. A associação Almargem coordenou, em 2019, um estudo sobre as zonas húmidas da região. A preservação do ecossistema tal como na ribeira do Almargem (Quarteira-Loulé) –, defendeu, passaria pela criação de uma área local de paisagem protegida. O município de Loulé avançou com o processo de pedido de classificação do espaço ao ICNF, a Câmara de Lagoa ficou-se pela criação de um parque natural da cidade.”

Jael Palhas acha que a visão municipal de pretender ter “laguinhos” no meio da cidade é míope. “Um dos valores deste sítio é poder mostrar à população zonas que têm água, mas em que a água não está à superfície em permanência.” Udo Schwarzer complementa a narrativa, juntando elementos cénicos e gesticulando como se estivesse a abrir o pano para um concerto. “As Alagoas podem funcionar como um palco em que todos os meses a natureza oferece-nos um espectáculo diferente.”

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