Van Zee é do mar. Não, literalmente – Van Zee quer dizer “do mar” em neerlandês. As coincidências são bonitas: Sebastião Caldeira poderia ter nascido de outra forma qualquer, mas nasceu do mar. É um dos apelidos que estão no cartão de cidadão e nem teve de puxar muito pela cabeça quando lhe perguntaram qual era o seu nome artístico: “Tenho aqui um nome que está a soar fixe, o people do surf (que pratiquei durante sete anos) chama-me Van Zee, então vai ficar”. O mar está em todo o lado na sua música. Foi assim que construiu a sua estética.
“Perguntam se sou da ilha, eu não sou da ilha, mano, eu sou do mar”, canta em Para casa. “Oceano tão vasto e eu tão longe, essa maré guia-nos por onde?”, questiona em Sol, que abre o álbum. Nascido e criado na Madeira, nem podia ser de outra forma, brinca. Agora que assentou na Grande Lisboa, não esconde que uma das coisas de que mais sente saudades é de, “quase em qualquer sítio, olhar e ver o mar”.
Do.mar foi lançado a 1 de Dezembro de 2023 — o corolário de um ano que levou Van Zee aos tops das plataformas de streaming como artista emergente. Anda pelas fronteiras entre o hip hop e o R&B, com letras que hesitam entre o confessional e o ego trip. Começa de mansinho, um Van Zee suplicante a apontar para os temas que percorrem o álbum. A suavidade tropical do instrumental contrasta com a ansiedade da letra: “Ao barulho da chuva, deixa-me ver o Sol/ Avisa-me se encontrares alguém melhor”, canta.
Entre versos mais velozes e refrães cantados, Van Zee discorre sobre a distância e a saudade (quando em Perto canta “A paca não encurta a distância” ou “A solidão fez-me ser outro gajo”) e sobre as pedras no caminho (“Tive de encarar a tempestade tão cedo/ Ainda não sabia navegar, tive medo”, admite em Para Casa). Em quase todas as músicas deste álbum – e mesmo quando quase nada o faria prever – fala de amor (difícil, como todo o amor jovem) e de uma musa, qual ninfa, que está quase sempre demasiado longe para se poder tocar.
Noutros momentos, muda o registo, e passa para um discurso inflamado, cheio de si mesmo. “I’ve been talking baguettes, meu tropa dá o toque pa’ falar de dollars”, diz em So flawless, com Yuri NR5. “A vida na crista da onda é de mais p’ó Zee, mas é lá que há notas”, revela em International bizz (mesmo que, uns versos depois, largue a armadura e admita: “Mas eu largo o mundo e fica o teu abraço”).
Do.mar conta com colaborações que o levam mais para o campo da pop, pela mão de Carolina Deslandes, ou mais para o rap, com Julinho Ksd ou Pikika. “Todas bué naturais”, admite o artista de 21 anos. Assumidamente ingénuo, diz que entrou nestas parcerias com uma vontade genuína de trabalhar com estes artistas: “Sou novo aqui e reconheço, as pessoas sentiram isso.”
O disco vai ser apresentado em três concertos: um no Porto, no Hard Club, amanhã, e dois em Lisboa, no Capitólio, a 9 e 10 de Março. Para as duas últimas datas, os bilhetes esgotaram em quatro horas. Mas quem é Van Zee e como é que ele conseguiu isto?
Encontramo-nos nos escritórios da Universal, multinacional que é a sua editora, em Lisboa. Van Zee é reconhecível pela cabeça rapada que é a sua assinatura desde que começou na música mais a sério. Ao seu lado, o produtor de quase todos os sons, o conterrâneo Nort. Cumprimenta toda a gente, senta-se, está bem-disposto, pronto a começar esta viagem pelo seu percurso.
As origens
Começamos na Madeira, onde viveu 18 anos, onde se estreou a fazer música, onde deu os primeiros concertos. “A primeira música que escrevi foi numa chamada de Skype com amigos, devia ter 13 ou 14 anos. Mas comecei mesmo a escrever quando fiz 15 e lancei o meu primeiro som”, lembra. Foi gravado na casa de um amigo, enquanto se baldava à explicação. “Enquanto estava a gravar, recebi um telefonema da minha mãe, o explicador tinha-lhe ligado a dizer que eu tinha faltado”, ri-se. “Não lhe queria dizer que estava a fazer música.”
Noites em branco foi o tema que começou isto tudo em 2018, feito com um beat que sacou da Internet: “A maior parte dos instrumentais ia buscar à Net, porque não tinha teoria musical. Ainda tenho pouquíssima, mas estou a aprender”, admite. “Acho que essa pureza e falta de conhecimento também me ajudaram a crescer.” No fundo, porque fazia as coisas porque gostava e não porque tinha de as fazer.
Ouvia Allen Halloween, Slow J, Wet Bed Gang (“na altura do Filhos do Rossi”), Drake (a influência mais reconhecível na sua discografia), Tupac, Biggie… “Com a minha mãe ouvia Mayra Andrade, com o meu pai, Tom Jobim. Não era só hip-hop. Era um espectro de músicas e realidades que gostava de absorver.”
O seu primeiro concerto foi mesmo a abrir para Halloween. “Estava no 11.º ano e estávamos a organizar o baile de finalistas”, começa. Convidaram o rapper para um concerto e, para surpresa de Van Zee, ele aceitou: “Termos conseguido o Halloween, na única vez que ele veio à Madeira… Achei estranho na altura e continuo a achar hoje”, confessa. Precisavam de alguém que abrisse: “Lá me convenceram.”
Desse concerto lembra-se, sobretudo, dos nervos, mas também da inexperiência. “Tinha as minhas músicas numa pen, que dei ao DJ que ia tocar na festa e foi tipo: ‘Safas-me aí esta noite?’. Acho que se levei seis ou sete músicas, foi muito. Não tinha quase nada lançado na altura e também não deixei nada de fora.”
Começou sem expectativas, apenas a de pôr música cá fora. Um dos grandes saltos foi quando conheceu o produtor Nort, através de um amigo em comum: “Ele estava a falar de mim ao Nort como ‘o meu amigo que faz música’ e estava a falar-me do Nort como ‘o meu amigo produtor’. [Éramos] dois parolos que não sabiam o que estavam a fazer.”
Aprenderam juntos; tornou-se sério. “Gravei para aí 100 faixas dentro de um armário e mandei para o Nort, estilo ‘toma, do whatever’”. Muitas vezes foram obrigados a trabalhar à distância, a falar pelo Whatsapp ou Discord. “Foi assim que chegámos aonde estamos hoje. Ele leva-me a aperfeiçoar as minhas partes mais técnicas.”
Hoje em dia são amigos? Nort, que até agora esteve calado, anui timidamente. “Criámos também uma abertura para, por exemplo, Alma nua ter sido escrita de um lugar de alguma vulnerabilidade”, afirma Van Zee. Nesse tema admite que já perdeu “o chão”. “Acho que é preciso uma conexão com a pessoa com quem tu estás em estúdio para compor uma coisa dessas.”
“Acho bué importante termos essa amizade, para não ser strictly business. Não dá para ser um businessman, uma máquina na arte. É uma área em que tens de te expor, as tuas dificuldades, os teus sentimentos, a tua perspectiva do mundo.”
Escala nos Países Baixos
Findo o secundário, rumou para os Países Baixos. A mãe é holandesa e a ligação já existia: pelo menos uma vez por ano ia visitar a família de lá. Mas, em 2020, no ano da pandemia, mudou-se para Amesterdão – sozinho, pela primeira vez fora da ilha.
Ir estudar para longe deixou-o “num lugar onde podia construir relações com as pessoas do zero”. “Essa mudança tão drástica, passar de conhecer toda a gente para, do nada, não conhecer ninguém foi o que me fez crescer mais. O ambiente de uma cidade cheia de nacionalidades, culturas, serviu para absorver e aprender com todas.”
Passou lá dois anos e meio. Ficou com algumas amizades que o mantêm actualizado no que toca à música e à cultura locais. Tudo isto teve impacto na música que faz hoje: “Acho que um dos traços mais claros da minha estética, que é misturar o inglês com o português, é porque vivi lá tanto tempo e a certa altura a maior parte das minhas conversas era em inglês”, afirma. “Amesterdão foi essencial para traçar não só aqueles traços evidentes da mistura, mas também o que estava a falar, aquela saudade de casa, saber o que é estar distante de quem amamos.”
A mistura do inglês com o português valeu-lhe algumas críticas, “especialmente no início”. “As pessoas pensavam: ‘Quem é este puto que está aqui do nada?’ Na altura, também era um pouco mais forçado. Agora se me pedem para escrever alguma coisa só em português ou inglês, se calhar não vai ser 100% meu. Se eu escrevo em inglês com outro intuito, para ver se bate lá fora? ‘Ná’, é porque realmente sinto que tenho dois baralhos de cartas.”
O curso de Gestão Hoteleira, que o levou a Amesterdão, é que ficou por terminar. “Ou as coisas correm muito bem ou muito mal para eu voltar a fazer o curso”, ri-se. Tinha um ano e meio pela frente. Coincidiu com a altura em que a música começou a tornar-se séria. “Comecei a receber mensagens do Simão, o meu manager, e da Virgin. Começámos a estabelecer uma conexão, mas eu, cheio de dúvidas, não confiava em ninguém porque era do tipo: ‘Para que é que vou entrar neste mundo de tubarões? Tenho um curso para acabar, quando acabar lá vou fazer o que quiser’.”
Game changer
Não hesita muito antes de dizer que o tema que lhe mudou o jogo foi Alma nua, lançado em 2023. “Há aquelas músicas que tu fazes e parece que está demasiado bom para o tempo que levou.” Esta é uma delas.
“Senti mesmo aquele impacto quando tanto a Alma nua como a Tempo tiveram uma sped up version [versão acelerada] no TikTok. Aproveitei e fiz a minha versão também. Crazy. ‘Viralizou’. A Tempo, uma música bué antiga, de 2020, a chegar ao top dos charts.”
Para Van Zee, perceber o que vai funcionar junto do público é uma questão de tentar adivinhar, e pouco mais. Não esconde que não sabe como funciona essa máquina, mas não se pode queixar – até agora, saiu favorecido. Ao longo da conversa, volta várias vezes à mesma ideia: apesar de tudo o que já conseguiu, ainda está a aprender. Recorda o lançamento de Aporia, o primeiro disco, em 2021: “Foi giro porque não tínhamos expectativas, não tinha pressão de ninguém, não queria saber se alguém ia gostar ou não. Era para mim...”
Serviu para saber o que fazia sentido, explorar “um bocado os branches [ramos] do hip-hop, fazer umas músicas mais electrónicas”. Do primeiro disco, Cuba foi uma das músicas que mais sucesso tiveram, quase de surpresa. E “foi uma boa forma” de se preparar para este segundo lançamento.
Do.mar foi diferente. Foi a chave de ouro que encerrou o ano em que deu o salto. A lista é longa para enumerar todas as mudanças. Assentou na capital (“Até eu sinto que já estou com menos sotaque”, brinca, a dada altura), deu muitos concertos – alguns, como o do festival O Sol da Caparica e das semanas académicas, ficam na memória. Sentiu “o love”: “Ver um sítio cheio de gente a cantar as tuas músicas numa só voz, tipo: ‘Como assim? Vocês conhecem este som?’”
É isso que mais valoriza. Traz os números na ponta da língua, mas é como se não lhes conseguisse dar forma: “Em 2022, tive 975 mil streams no ano todo e, no ano passado, foram 28 milhões. Sinto que vivi uma vida no ano passado. Eu sei que isto é bué, mas quanto é? Esta parte dos números, sinto que não me traz gratificação instantânea”, confessa. “É difícil de interiorizar. Às vezes penso se estou a reagir tanto como deveria, se estou a celebrar como deveria.”
Não surpreende que o que mais anseia nos concertos de apresentação de do.mar seja o contacto com o público: “Acho que aquele feeling mais pessoal é mais importante do que os números ou as mensagens.” Em troca, preparou uma experiência completa: vai tocar todas as músicas do álbum e despedir-se de outras mais antigas. “Vai ser o fechar de um ciclo. Vai ser intimista. Novos arranjos, nova equipa, estou muito entusiasmado.”
“Neste início do ano parece tudo muito mais real, as pessoas já percebem que eu estou a fazer isso como trabalho, não é um hobby.” Não lhe resta pedir nada para o futuro. Apenas “não viver tanto no caos”. E “continuar a ter essa paixão e alimentar o lado positivo da relação com a música”.