Sim, venceremos. Mas a que terrível custo?

Os recentes desenvolvimentos, como a queda de Avdiivka, a falta de pessoal e munições ou a incerteza sobre o financiamento norte-americano, tornam imperativo reafirmar o apoio à Ucrânia.

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No dia em que me alistei, jurei morrer em batalha, mas encontrei o amor. Entre o prazer do primeiro beijo e as lágrimas da despedida, decorreram poucas semanas. Estremeci na primeira e na última vez. A guerra estalou e nunca mais o vi. Parti à procura daquele soldado e do meu sentido de missão: defender a nossa terra! Calcei as botas enlameadas, coloquei o bivaque na cabeça e peguei no fuzil. Fui para a frente de combate e marchei com a esperança de um dia regressar...

Esta história é romanceada, mas podia ter acontecido. Em rigor, a minha ficção é inspirada nos testemunhos das jovens combatentes do Exército Vermelho. Transcritos em A Guerra não tem rosto de Mulher, pela mestria de Svetlana Alexievich, jornalista ucraniana, é uma obra tocante, impressionante, de leitura obrigatória, sobre a violência da guerra, o mundano e a sombra da morte, no meio da passagem da adolescência para a condição de mulher.

Em contraste, as palavras do título deste artigo são reais, tendo sido proferidas pela primeira-sargento Albina Gantimúrova, batedora russa na Segunda Guerra Mundial. Uma militar que, entre tantas outras franco-atiradoras, operadoras de comunicações ou enfermeiras, sacrificou a alma por uma narrativa ideológica e um país que traiu a confiança dos que tiveram a coragem de lutar em nome da liberdade. A 27 de janeiro de 1945, os soldados soviéticos, junto das tropas aliadas, libertaram o campo de concentração nazi de Auschwitz-Bierkenau, na Polónia. “Sim, vencemos, mas a que preço? A que terrível preço?!”

Desde 24 de fevereiro de 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a potência imperial ocupada na década de 1940 é agora a invasora, sob o falso pretexto de “desnazificar” o território ucraniano. Aquando do início da agressão ilegal, três mulheres judias, que haviam escapado para a Ucrânia durante o Holocausto, refugiaram-se na Alemanha para agora fugir ao bombardeamento soviético. “Foi muito assustador, lembrei-me logo de tudo”, contou uma das sobreviventes do nazismo com as lágrimas nos olhos. Uma tristeza apenas atenuada pelo acolhimento alemão, que a “surpreendeu positivamente”. O próprio arcebispo ucraniano ortodoxo, Yevstratiy Zoria, disse estar a viver “como se estivesse dentro de um documentário da Segunda Guerra Mundial”, relata Cândida Pinto em Ucrânia Insubmissa. Em 2023, a Federação Russa não participou nas homenagens às vítimas do nazismo, algo que nunca tinha acontecido até então.

A obra de Cândida Pinto é um exemplo desta realidade sombria. Acompanhada pela mestria e sensibilidade fotográfica de David Araújo, a jornalista evidencia o trauma da guerra e dignifica a resiliência e o humanismo do povo ucraniano, sem nunca perder a objetividade e a delicadeza na escrita. Relatam-se testemunhos vivos da brutalidade da guerra, onde o medo é permanente. “E depois aquela súbita vertigem de um míssil a mudar o correr das vidas”, escreve.

Nas páginas de Ucrânia Insubmissa encontrei a felicidade amorosa de Anastasia e Vaicheslav. Casaram no 43.º dia da guerra, imortalizando-o com um beijo entre um passado e um futuro em suspenso. “Se atravessarmos a guerra juntos, nenhum problema poderá ser maior”, afirmou a noiva. A cerimónia terminou ao som das sirenes.

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Vaicheslav não sobreviveu à queda de um míssil no local onde se encontrava, em Abril de 2023 David Araújo
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Anastasia e Vaicheslav casaram-se em 2022, ao 43º dia da guerra Mikhail Palinchak

Um ano depois desta união, envolta de “gargalhadas felizes e nervosas”, refere Cândida, o ramo de flores transformou-se em cinzas e os sonhos desfizeram-se com a artilharia do inimigo russo: a 21 de abril de 2023, coincidentemente no mesmo mês em que havia casado, Vaicheslav foi atingido por um míssil. Anastasia, agora viúva, carrega nas mãos a esperança de recuperar a sua Pátria, honrando também a morte do seu marido. “Obrigada por contarem a nossa história. A foto lembra-nos os momentos agradáveis da nossa vida. A sua memória viverá enquanto as pessoas se lembrarem dele”, disse ela à jornalista.

Em 2024, centenas de outras histórias verdadeiras desafiam o horror e deixam marcas profundas. Poucas mãos nos faltam para acudir os feridos, dar alento aos sobreviventes e confortar as testemunhas, enquanto os mortos se amontoam nas fronteiras (seja na Ucrânia ou em Gaza).

Perguntará o leitor qual o propósito central deste artigo. A caminho de dois anos de guerra, num quadro securitário internacional cada vez mais instável, o meu propósito é simples: reafirmar o apoio ocidental e a prevalência das regras da ordem multilateral. Defender e apoiar a Ucrânia é mais do que uma necessária posição política e humanitária. É também uma posição normativa, referente ao direito internacional: a integridade territorial é uma regra basilar das relações entre Estados que remonta à Paz de Vestefália de 1648. Os recentes desenvolvimentos – tais como a queda de Avdiivka, a falta de pessoal e de munições ou a incerteza sobre o financiamento norte-americano – tornam esta reafirmação imperativa. O apoio dos aliados é fulcral, pois a defesa do espaço europeu depende da vitória da Ucrânia.

A questão de Gantimúrova continua a ser pertinente no presente e projeta-se no futuro. A Ucrânia irá vencer. Mas com que custo coletivo? A tão falada “fadiga da guerra” é uma ilusão para quem vive em segurança. A incerteza que se avizinha, com as próximas eleições europeias e norte-americanas, pede maior cautela na análise e nas decisões políticas, mas não tenho dúvidas: a diplomacia e o multilateralismo são as nossas melhores armas para proteger a democracia, afastando os extremismos. No ano em que se celebram os 75 anos da NATO, temos uma Aliança mais forte e comprometida com a defesa do espaço euro-atlântico, e isso é uma garantia de segurança inabalável.

Nota: Agradecimento especial à jornalista Cândida Pinto por me ter autorizado a citar estas palavras, originalmente publicadas no seu Facebook pessoal, onde relatou sentidamente a morte de Vaicheslav.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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