A Era da Barbárie

Ou como a linguagem nos define, desengana e condena.

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A minha avó, quase analfabeta, não dizia uma asneira. Tive a felicidade de ter tido como principal modelo alguém que, sem dependência de normas sociais, sabia de forma inata que havia uma dignidade na simples forma de nos dirigirmos aos outros. Para ela, qualquer pessoa tinha em si uma dignidade que lhe dava um lugar especial na comunicação. Não lhe fora necessária uma educação formal para lho ensinar. Era natural não mentir, apesar de nunca ter aprendido lógica que lhe demonstrasse que as contradições na linguagem são uma desonestidade grosseira.

Os debates políticos a que temos assistido têm sido um manancial muito grande sobre a forma como um certo setor passou a ver o oponente, o outro. O esgrimir de ideias e de argumentos deu lugar à mentira atirada sem qualquer pejo, à mudança de posição quando tal parece melhor, ao uso de vocabulário perfeitamente bárbaro numa civilização que se digne ser herdeira de dois mil anos de Cristianismo, quinhentos de Humanismo e trezentos de Iluminismo.

Os mimos, as pérolas, que demonstram o grau de incivilidade têm sido imensas: “prostituta”, “ministro Trapalhadas”, ou "idiota útil da esquerda", são as palavras e as expressões que, não fora o drama coletivo que mostram, até nos fariam rir. Mas não são comédia, são drama.

Voltando ao barbarismo, para os gregos, os bárbaros eram, literalmente, e segundo a onomatopeia que lhe está por base (“bar bar bar”, a reprodução dos sons nas línguas que não entendiam), quem não entendiam. Numa valorização da natureza da língua, o mundo era como que dividido entre os que falavam e os que emitiam sons.

Para mim, hoje, os bárbaros são aqueles que se afastam da dignidade que as palavras e a comunicação devem ter. A semântica e o léxico da linguagem hoje usada por determinadas pessoas ofende os ouvidos, entope o pensamento, embrutece o ser. Emitem-se sons, como que grunhidos, mas sem substância, numa sociedade que é herdeira de uma longa história em que cada vez se valorizou mais o pensamento e não a barbaridade das ações desregradas, fora dos códigos da civilidade que nos permitem não nos ofendermos uns aos outros.

Falar, comunicar, implica um respeito pelo outro e pela própria mensagem. Dizer asneiras, ofender, é baixo. Tão simples quanto isto. E é preciso regressar ao básico quando estamos a ver o vislumbre do grau zero da civilização a tornar-se normal e a ver muitos de nós a aplaudir.

Ofender, seja Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos ou Rui Tavares, tal como o vizinho do lado, o colega de escola ou o adepto de outro clube, passou a fazer parte de uma normalidade de linguagem com a qual não podemos pactuar. Há quem, por acaso, viva na mesma geografia que eu, mas seja de outra espécie. Depois de séculos de evolução, alguma coisa correu mal e temos o regresso do Homo Brutificadus.

Queremos ser governados porque não distingue a mentira da verdade? Queremos ser governados por quem usa a grosseria e a ofensa como forma de debate? Queremos regressar ao debate realizado na violência, talvez física, intimidatória, com a imposição da vontade? É que é um pequeno salto aquele que é necessário dar entre uma coisa e a outra.

Se ainda estivesse connosco, veria a minha avó levantar-se do sofá, a ir desligar o televisor e concluir que “não se consegue ouvir este senhor...”. Seria irónica onde tantos de nós somos boçais, dando-lhe espaço para nos conspurcar com as suas baixezas que são, literalmente, um retrocesso civilizacional.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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