Adeus à culpa sobre a roupa (suja, por engomar, por arrumar...)

É tão fácil sermos apanhadas pela síndrome da Mulher Ideal (até havia um concurso), e pela ilusão de que o trabalho alguma vez estará terminado.

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Querida Mãe,

No outro dia tropecei numa teoria espetacular chamada The Laundry Cycle, ou seja, o ciclo da roupa para lavar. Foi inventada por KC Davis, terapeuta, escritora e criadora da plataforma de saúde mental Struggle Care, onde partilha uma abordagem diferente em relação aos cuidados pessoais e da casa.

A teoria surgiu-lhe durante uma entrevista, quando a jornalista lhe confessou que quando olhava para a pilha de roupa acumulada no cesto se sentia sempre a falhar (quem nunca!?). KC Davis deu-lhe, espontaneamente, esta maravilhosa resposta: “Eu comprometi-me a ter roupa lavada para os meus filhos. Não me comprometi a não ter roupa suja.”

Achei espetacular e ideal para aplicarmos a quase tudo na parentalidade. KC Davis explica que a lavagem da roupa é um ciclo: roupa suja no cesto, roupa dentro da máquina, roupa lavada no cesto, roupa lavada estendida, roupa seca, roupa na gaveta etc. E lembra-nos: ter a roupa em qualquer uma destas fases está certo.

Pareceu-me tão relevante porque, enquanto mães, temos a ideia absurda de que devia estar tudo feito e pronto em simultâneo; que há de chegar o dia em que vamos ter tudo tratado.

Mas a nossa existência é feita destes ciclos e a única coisa que podemos fazer é olear a engrenagem para que esteja ao nosso serviço e seja funcional, deixando-nos espaço para viver, e não o contrário.

Ainda segundo KC Davis o cuidado da casa é de valor moral neutro: não diz nada sobre nós; não nos torna melhores ou piores pessoas!

Por isso, mãe, adeus à culpa sobre a roupa! Adeus, mesmo.

Uma última coisa: os avós também têm estes ciclos de culpa em relação aos netos?


Querida Ana,

Acredites ou não, hoje, quando recebi esta tua carta, estava precisamente a pôr a roupa dos netos na máquina, e a sentir que me podia mascarar de Lavadeira. Com a chuva e as tintas a molharem e a sujarem tudo o que vestem, somado ao desejo de brilhar aos olhos das minhas filhas e noras, caí precisamente na armadilha de que a senhora Davis fala.

É tão fácil sermos apanhadas pela síndrome da Mulher Ideal (até havia um concurso), e pela ilusão de que o trabalho alguma vez estará terminado.

Aliás, para corroborar a tese da terapeuta, tenho a citação de um taxista. Um dia, saí do jornal às nove e tal da noite, quando tinha prometido a mim própria estar em casa às seis, e queixei-me de que o trabalho era tanto que nunca mais acabava. E foi aí que ele me lembrou, num tom assertivo-simpático, que o trabalho nunca acaba, nós é que temos de acabar com o trabalhar. Ser capaz de o largar. E tinha toda a razão, seja o assunto um cesto de roupa, uma caixa de email a transbordar por fora ou — o cerne da tua questão! — os filhos e os netos. Mal nascem, já estamos a projetá-los como adultos e a ambicionar uma versão engomadinha e perfeita, à prova de toda a crítica. E a sentir culpa em cada um dos ciclos, catastrofizando — palavra que aprendi contigo! — o futuro, martirizando-nos porque está há demasiado tempo na “fase” da gaveta, ou a criar bolor no tambor da máquina, aparentemente sem avançar para o estádio seguinte. Sem tomarmos consciência de que a vida é feita de ciclos, que só terminam com a morte, ou nem isso.

O pior é que o poder da razão, não tira tão bem as nódoas da culpa como desejávamos, mas talvez, tomando consciência da armadilha, a consigamos evitar. Espera, oiço um apito. É a máquina de lavar a assinalar que terminou, ou então são os remorsos de te estar aqui a escrever em lugar de ir tratar da roupa (gargalhada).

Beijinhos e obrigada por me desafiares a pensar nestas coisas que damos por certas.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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