"Escrevo de uma forma completamente cega. Por instinto. Fico à espera de que a frase venha, às vezes durante bastante tempo – porque sei, por exemplo, que 'ali' deve ficar um trissílabo –, tenho a música na cabeça e ainda não sei qual é a palavra. Não há, de forma alguma, uma premeditação. Quando me perguntam qual foi a minha intenção ao escrever isto ou aquilo, só sei dizer que me apareceu."

É Hélia Correia que o diz na entrevista que deu ao Ípsilon. O pretexto é o livro de contos Certas Raízes, regresso à ficção de uma das mais originais escritoras portuguesas. Escreve contos, romances, poesia, peças de teatro e livros para a juventude. Mostra-se tão à vontade na Grécia antiga ("Se começo a falar dos gregos, não me calo") como na actualidade.

Estes dias em que os extremismos medram assustam-na. "As multidões cegas destroem tudo à sua passagem. É uma espécie de alucinação, porque é sempre um processo muito pouco racional. A minha escrita, que é intuitiva, está agora, cada vez mais, infectada pelo real, por estes tempos tão ameaçadores. É algo que se cola à nossa pele."

Confessa a francesa Anne Akrich: "Nunca me senti à vontade em terapia, sempre achei que era indecente falar assim de mim própria. E é isso que faço nos meus livros. Infelizmente". A "terapia" da escritora está à mostra em O Sexo das Mulheres, editado recentemente em Portugal. Falámos com ela em Cascais, onde se encontra em residência literária.

"É a mulher mais feroz que alguma vez conheci", disse Toni Morrison sobre Angela Davis. Negra, mulher, comunista, tripla condição desta "ameaça pública" nos Estados Unidos dos anos 70, fez há 50 anos uma autobiografia, reeditada recentemente, com novos comentários seus. É um testemunho humano, político, urgente na era do Black Lives Matter.

A coreana-canadiana Celine Song é uma dramaturga tornada cineasta – e logo com uma obra muito elogiada, candidata ao Óscar de Melhor Filme. Continua a aprender com Vidas Passadas ("grandíssimo", aplaude Jorge Mourinha), com a forma como é recebido o filme, agora nas salas portuguesas. "Sou o tipo de pessoa que, quando cria algo, quer estar realmente sintonizada com o público, saber o que ele sente e espera. E isto tem que ver com o meu trabalho de dramaturga, porque o teatro é muito directo", diz em entrevista.

Dentro de Lisboa, "existem outras cidades que nós nunca chegamos a habitar". Em Baan, Leonor Teles quis contar a história de uma Lisboa que, ao virar da esquina, pode ser Banguecoque. Tinha vontade de jogar com esse cruzamento, "procurar Lisboa na Ásia, procurar a Ásia em Lisboa", um encontro mental possibilitado e realizado pelo cinema.

Em 2023, o burburinho foi crescendo, sala após sala. Nos Hetta e nos Maquina., respectivamente quarteto punk do Montijo e trio lisboeta de rock’n’roll feito pista de dança, o concerto surge como realidade transformadora. Tocar, fazer, gritar, dançar é para estas duas bandas um impulso irresístivel. É uma missão colectiva – delas e de quem as segue – que contrasta com o individualismo e o isolamento digital dos nossos dias. Há algo de excitante a acontecer no rock português, como mostra a reportagem de Mário Lopes e Paulo Pimenta.

Também neste Ípsilon:

- Elogios a Deus na Escuridão, o novo romance de Valter Hugo Mãe

- Entrevista com J Mascis, instituição do indie rock

- O jazz desafiante de Marta Warelis

- Os retratos da Margem Sul do Tejo pelo fotógrafo Diogo Simões na ZDB e a fantasia marítima do artista Miguel Palma em Ílhavo

Boas leituras!


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