O tempo que passa e o tempo que faz

Há alguma coisa que me incomoda no facto de sair de casa em Janeiro sem precisar de casaco. É um incómodo quase imperceptível, como um formigueiro cuja origem não conseguimos situar.

Ouça este artigo
00:00
03:48

Há uma semana fui passear para a zona de Aveiro, experimentar um percurso junto à ria que ainda não conhecia. Saí de casa antes das 8h, o que me permitiu assistir a mais um admirável nascer do sol, que tingiu o céu de tons lilás e rosa. Repito: ainda não eram 8h, foi há uma semana, a 28 de Janeiro, e saí de casa vestida com uma T-shirt e uma camisola cardada. Sem casaco.

Eu gosto muito do sol. Pertenço, aliás, àquele grupo de pessoas que, se passam demasiados dias sem o ver, começam a sentir-se deprimidas e sem energia. E gosto do calor, embora os dias gelados e de céu limpo de Inverno se contem entre os meus favoritos. Mas há alguma coisa que me incomoda no facto de sair de casa em Janeiro sem precisar de casaco. É um incómodo quase imperceptível, como um formigueiro cuja origem não conseguimos situar, e que também se faz sentir a cada imagem partilhada nas redes sociais de pessoas a inaugurar os mergulhos no mar ou a apanhar sol, na praia, como se fosse Verão.

Não vale a pena fingirmo-nos de desentendidos: o clima mudou e a ausência de frio real em Janeiro deverá tornar-se cada vez mais comum. Os dias seguidos em que se anunciam temperaturas mínimas a rondar os zero graus parecem ter desaparecido.

Há poucas semanas, no pouco frio que se fez sentir em Dezembro, dei por mim a ouvir as queixas da jovem fisioterapeuta que andava às voltas com o meu ombro estragado, lamentando-se pelas baixas temperaturas. Dizia ela que não se lembrava de alguma vez ter feito tanto frio por aqui. Não fui capaz de conter uma gargalhada. Às vezes, são estas pequenas coisas que nos fazem perceber como vinte anos de diferença mudam totalmente a nossa percepção. Como o tempo que faz será uma memória muito diferente para duas pessoas de idades diferentes que partilham o mesmo espaço.

A neve nunca foi habitual por aqui, na região do Porto, mas guardo memórias desses momentos raros em que nos bateu à porta. A primeira vez ainda andava na escola primária e dormia no sofá da sala. O dia não tinha nascido, mas uma das minhas irmãs acordou-me, pegou-me ao colo, e levou-me ao pátio para ver os flocos que caíam do céu. Nesse dia voltou a nevar enquanto estava na escola e foi uma festa.

Da segunda vez andava já no 2.º ciclo e a queda de neve surpreendeu-nos a meio de uma aula, rapidamente interrompida para podermos apreciar, no exterior, o acontecimento. E a terceira foi mais recente e triste. Já estava a trabalhar. No centro histórico do Porto, o incêndio numa casa antiga tirou a vida a uma mãe e às filhas. Caíam farrapos de neve quando a confirmação da morte da última criança nos foi transmitida.

As minhas memórias de neve no local onde vivo acabam por aqui, mas os dias gelados até há pouco tempo eram uma constante. Janeiro e Fevereiro deixavam-nos a bater o dente constantemente. Sair de casa sem casaco era, simplesmente, impensável.

Agora, já não é assim. A jovem fisioterapeuta com 26 anos acredita que neste Dezembro vivemos os dias mais frios de que se recorda. Não é verdade, mas é para alguém tão novo como ela (a memória tende a enganar-nos). Ou, pelo menos, não foi verdade até agora. A partir daqui, pode ser que assim seja. Quem pode garantir o contrário?

O clima está a mudar e, este ano, pela primeira vez, apercebi-me de um grupo de andorinhas que já não partiu. No percurso junto ao rio Leça que percorro amiúde, elas foram uma presença constante durante todo o Outono e o Inverno. Não são tantas como as que por ali andavam no Verão, deixando-se ficar até quase ao final de Outubro. E não as tenho visto pousadas nos fios de electricidade, como é habitual nessa altura.

Mas o seu bailado irrequieto sobre os campos que ladeiam o caminho andou sempre por ali. Como se tivessem percebido que já não vale a pena fazer o esforço de uma viagem de milhares de quilómetros para passar o Inverno num Sul mais quente. Como se soubessem que o Sul já está aqui.

Sugerir correcção
Comentar