Rui Moreira, a tua casa não vai virar ocupação

Afinal as palavras de ordem não são literais, mas essa informação ainda não chegou às redes sociais. Questionemos não só a xenofobia latente, mas também a falta de capacidade pensamento crítico.

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Megafone P3: Rui Moreira, a tua casa não vai virar ocupação Paulo Pimenta
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No passado sábado, milhares de pessoas saíram às ruas para defender o direito à habitação. Após meses de notícias que denunciam as precárias condições de alojamento em Portugal, a resposta a esta crise parece nunca chegar ou ser tão ineficaz que no final de janeiro de 2024, continua a haver necessidade de berrar nas ruas que toda a gente precisa de um teto. Entre palavras de ordem, propostas e queixas em cartazes chamou a atenção um grito reivindicativo que desafiou o pensamento crítico de muitos.

Na manifestação que aconteceu no Porto, somaram-se as formas criativas de protesto. Depois de cartazes que denunciam a média de estudantes por quarto e das casas feitas de cartão carregadas à cabeça dos manifestantes, foi uma palavra de ordem demasiado disruptiva, berrada por um pequeno grupo, que dividiu as opiniões nas redes sociais: “Oh Rui Moreira / presta atenção / a tua casa vai virar ocupação”. Foram estes os versos que se fizeram ouvir em várias manifestações deste género nos últimos meses. No entanto, pela primeira vez, foi agora considerada uma grande falta de respeito para com o excelentíssimo presidente do município. Um vídeo capturado durante a manifestação circulou nas redes sociais, causando cisma na opinião pública. Se de um lado, encontramos alguma compreensão, do outro encontramos pessoas que parecem pensar que dizer que a casa de Rui Moreira vai virar ocupação é tão grave como efetiva e literalmente ocupar a propriedade.

Mas o que causou mais desconforto e revolta foi uma voz que sobressai no vídeo em questão. Sucede que uma das pessoas a cantar essa palavra de ordem tem sotaque brasileiro. Ora, partilhado na rede social TikTok, o vídeo em questão sugere que os brasileiros estão a ameaçar ocupar propriedades em Portugal e os comentários tendem a seguir o mesmo raciocínio. Não querendo entrar no debate do respeito ou da nacionalidade – que, pela amostra nas caixas de comentários, não é frutífero nem dignificante —, o que me parece importante analisar nesta polémica é a aparente falta de capacidade de interpretação que assola estes internautas.

É de apontar que berrar numa manifestação protegida por forças policiais recorrendo ao uso de colunas e megafones não só não é equivalente a pôr em prática o que se está a dizer, como não é uma forma muito eficaz de anunciar a intenção de cometer uma ilegalidade que, nestas circunstâncias, seria facilmente travada antes de ser posta em marcha. Ou seja, é evidente que não há uma intenção explícita de ocupar a propriedade privada de Rui Moreira. O mais preocupante é esta lógica não ser óbvia e lermos facilmente vários comentários que acreditam que o direito à propriedade do presidente da câmara do Porto está sob ameaça de uma qualquer revolução liderada por uma jovem de microfone na mão e seguida por um punhado de pessoas com bandeiras e um tambor – realmente assemelha-se a um cenário de batalha.

Eu tive aulas de português até ao final da minha formação de ensino secundário e aprendi conceitos como sarcasmo, metáfora e ironia. Sugiro que não esqueçamos essas noções antes de partir para comentários sobre gente que tenta fazer o que tem ao seu alcance para resolver ou chamar à atenção para problemas que afetam todo o país.

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