A extrema-direita nas ruas do Martim Moniz e os imigrantes fechados em casa

A insistência dos organizadores em ocupar a rua amanhã é uma afronta inédita ao Estado de direito. Talvez agora fique mais evidente que estamos encostados a um barril de pólvora.

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Amanhã, 3 de Fevereiro, terá lugar uma manifestação no Martim Moniz e na Mouraria. As manifestações não carecem de autorização, devem apenas ser atempadamente comunicadas às câmaras. Sucede que esta manifestação é assumidamente “contra a islamização da Europa” e a sua convocatória refere que pretendem passar “pelas ruas com mais imigrantes do país, sobretudo de origem islâmica”. O coletivo que a organiza é de extrema-direita.

Não é preciso apresentar argumentos para afirmar que se trata de uma ação ilícita de natureza racista e xenófoba e que consistirá em puro incitamento ao ódio e à violência contra pessoas em razão da sua cor, nacionalidade, ascendência ou religião. Cada um de nós sabe exatamente do que se trata.

A PSP emitiu um parecer no sentido de considerar que a manifestação representa um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública. Por sua vez, a CML anunciou que não a autorizava e que essa decisão tem a ver com o parecer da PSP. Como jurista digo que faria mais sentido que proibissem a manifestação e como cidadã reitero-o. Independentemente do parecer da PSP, aquela manifestação contraria a lei e a Constituição e deveria agir-se em conformidade e com esse fundamento.

De qualquer forma, e para o que aqui interessa, a manifestação já deveria ter sido cancelada pelos seus organizadores. Sucede que aconteceu o contrário: estes avisaram publicamente que, ao arrepio do entendimento das entidades, farão a manifestação à mesma.

São pessoas que têm afirmado que os imigrantes do Martim Moniz ameaçam a segurança e a ordem naquela zona da cidade. Dizem que não se sentem seguros e que ninguém está seguro ali. Falam em assaltos, tráfico de droga e assédio às mulheres. Mas nada disso tem qualquer fundamento. Os imigrantes no Martim Moniz não provocam quaisquer desacatos e estão simplesmente a tentar construir uma vida digna ou à espera de obter documentação que lhes permita ir para outros países da Europa.

Crimes e desacatos, no Martim Moniz, só se for amanhã.

Estas pessoas convocaram uma manifestação que contraria a lei e estão prontos a militar contra decisões administrativas e pareceres da PSP. Não me ocorre melhor caracterização de um grupo desordeiro e delinquente. Sim, amanhã o Martim Moniz e a Mouraria serão mesmo sítios perigosos.

Os organizadores pediram doações que se destinam à compra de archotes, tochas e parafina líquida. Nada faltará ao cortejo racista. O ambiente de ameaça a famílias que estão longe do seu país de origem e da sua rede de apoio é total e intencional.

Soluções para sábado?

O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior apelou aos residentes, em grande parte imigrantes, para não reagirem a provocações e para não saírem das suas casas. Também o comércio deverá estar fechado. Percebo as boas intenções de Miguel Coelho, mas não vejo como podemos conformar-nos com isto.

A manifestação é ilícita e as diferentes entidades já se opuseram à sua realização. A insistência dos organizadores em ocupar a rua amanhã é uma afronta inédita ao Estado de direito. Será que não temos meios para garantir o cumprimento da lei e para proteger aquelas pessoas de outra forma que não seja pedir-lhes que se tranquem em casa?

E se os manifestantes tivessem anunciado que pretendem incendiar as lojas e as casas sobrelotadas dos imigrantes? Diríamos para estes regarem as fachadas dos edifícios e para ficarem no seu interior enrolados em mantas húmidas? Qual é o limite para se decidir que é preciso pedir às forças de segurança que façam cumprir a lei e que protejam as pessoas?

Estes agitadores de extrema-direita costumam fazer a defesa das forças de segurança sempre que se fala em racismo e abuso de poder nas forças policiais. É certo que dentro das próprias polícias a infiltração do ideário de extrema-direita é uma realidade e tem como consequência a propagação de preconceitos raciais entre os agentes ou guardas. No sábado, organizadores da manifestação e polícias estarão em posições conflituantes. Resta-nos confiar que as polícias cumprirão a sua missão. E talvez agora fique mais evidente que estamos encostados a um barril de pólvora.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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