O autocarro da tia que nunca Chega

Foi o suor do trabalho da minha tia, uma entre os milhares de migrantes, que ajudou, também, a construir este Portugal, imprimindo-lhe uma dimensão cultural mais diversa, interessante e rica,

Ouça este artigo
00:00
06:04

Foi em 1977 que a minha tia imigrou de Cabo Verde para Portugal.

Trabalhou mais de quarenta anos na limpeza dos autocarros da Carris. Todas as vezes que eu andava de autocarro dava por mim a cheirar, sentir e a observar o resultado do trabalho da minha tia e o das suas colegas que, no silêncio da madrugada, limpavam as pegadas, as sujeiras e as mágoas dos passageiros.

Certamente, a maioria dos normais passageiros durante a viagem pensavam nas suas vidas: as contas para pagar, os ingredientes para o jantar que teriam ou não no frigorífico, a educação e crescimento, as birras e os abraços dos filhos. Quem tinha estado a noite inteira a limpar os autocarros pouco ou nada importava. Eu não me sentia um passageiro normal dentro dos autocarros da Carris. De certo modo comungava do trabalho e do esforço da minha tia e, invariavelmente, assomava à minha memória o helicóptero que num certo Natal ela me havia ofertado. Tinha sido o sacrifício do labor da minha tia, cansativo, repetitivo mas digno a razão da inveja dos meus amiguinhos. Foi o seu trabalho invisível que mo comprou.

A minha tia está hoje reformada e continua a morar em Chelas.

Foi o suor do trabalho da minha tia, uma entre os milhares de migrantes, que ajudou, também, a construir este Portugal, imprimindo-lhe uma dimensão cultural mais diversa, interessante e rica. Foram os migrantes que ajudaram a conquista de medalhas desportivas em diferentes modalidades que tanto nos contentaram, que contribuíram para a segurança social. Em 2022, foram 1861 milhões de euros.

O trabalho dos migrantes é feito, quase sempre, com enorme dureza, muitas vezes de forma precária e quase sempre na invisibilidade. São os migrantes que limpam os nossos aeroportos, muitos dos nossos lares, que suportam o setor do turismo e restauração, construção civil e agricultura. Isto é um facto e não uma qualquer opinião ou suposição.

Voltando à minha tia. No outro dia, em conversa, num tom de desabafo e mágoa, confidenciou-me que não percebia como é possível que os portugueses votassem e gostassem de um partido que é racista e xenófobo. Um partido que cria uma narrativa fictícia de invasão de migrantes, acusados de “roubar empregos” aos cidadãos nacionais, de ameaçarem a segurança e de beneficiarem das regalias sociais pagas pelos impostos de outros.

Enquanto ouvia a repetição da sua angústia por palavras e tons diferentes, comecei eu próprio a fazer a mesma pergunta. Porquê?

A primeira coisa que disse à minha tia é que a mentira é, muitas vezes, atrativa e o líder do Chega, à semelhança dos seus colegas de extrema-direita, bem o sabe e aproveita, capitalizando uma boa parte dos descontentes com esta narrativa falsa.

O segundo argumento, que partilhei com a minha tia, foi que o apontar o dedo ao outro compensa. O próprio crescimento meteórico deste partido comprova isso mesmo. Os ciganos, os migrantes, os beneficiários do rendimento social de inserção, os sem voz, são assumidos pelo Chega como a fonte de todos os males que afligem o país. Para um indivíduo, por exemplo que está descontente com o sistema político e o estado do país, sem paciência para ultrapassar a muro da desinformação e da ignorância, ouvir um político a apontar os culpados é música para os ouvidos.

O terceiro argumento tem muito a ver com a enorme dificuldade dos partidos políticos de contrariar de forma racional e com argumentos consistentes a narrativa do Chega. O exemplo mais visível é o tema da imigração. Hoje, todos apontam para o contributo extraordinário que a imigração teve e tem em Portugal, na forte dependência de alguns setores económicos da mão de obra migrante e na renovação e na sustentabilidade demográfica. São muitos ainda que acreditam que o antídoto para travar o Chega reside unicamente num discurso à volta de que estamos perante um partido racista e populista. Todas as sondagens dizem-nos que temos ser mais eficazes no combate ao Chega.

O quarto argumento está relacionado com a convicção de que Portugal é diferente dos outros países europeus. É imune aos discursos populistas, racistas e xenófobos, e até se ignorou o crescimento do Chega. Desde início do seu aparecimento no panorama político que tive a perceção de que, mais cedo ou mais tarde, qualquer solução governativa da direita implicaria o envolvimento de um partido de extrema-direita. Apesar do pertinente cerco sanitário que o PSD atualmente fez, a realidade é que o próximo dia 10 de março poderá ditar a morte deste mesmo cerco. Porque os partidos, para o bem ou para mal, anseiam pela obtenção do poder, dificilmente a Aliança Democrática, não obtendo os votos necessários para formar governo, irá resistir em o alcançar, mesmo que isso possa implicar um (re)aproximar ao Chega. Será muito triste e trágico a chegada do momento em que seremos governados por um partido de extrema-direita, paradoxalmente, no ano em que se comemoram os cinquenta anos do 25 de abril. Já estivemos mais longe!

O quinto argumento tem a ver com distanciamento e abandono que muitos cidadãos sentem em relação à política e que canalizam esse sentimento para um partido que, esquecendo-se as suas mentiras, acham que vale a pena.

Outra hipótese plausível é a de acharem que a generalidade da política e dos políticos não devem ser levados a sério e que pior dificilmente o país ficará.

A minha tia interrompe-me, questionando: “O que devemos fazer agora?”

“Tu, eu e os milhares de imigrantes tornam Portugal um país bem melhor e não deixes, tia, que ninguém diga o contrário.”

O que nós, os migrantes e os que defendem um Portugal decente devemos fazer: contrariar com os factos estas mentiras, informar, participar no debate e na construção de um Portugal plural, aberto e tolerante. Isso implica, obviamente, não votar no Chega.

Mas também envolve um sentido genuíno dos partidos decentes em colocarem sempre, mas sempre em primeiro lugar, o compromisso coletivo. Se hoje, temos cada mais cidadãos descontentes com o país, isso teve a ver, muito provavelmente, com a existência de muitos políticos e de políticas completamente desligados do compromisso com o outro e com o pôr-se no lugar do cidadão comum.

Foi em 1977 que a minha tia imigrou de Cabo Verde para Portugal.

De qualquer modo, não sei se o André Ventura e os seus companheiros andaram no autocarro que a minha tia limpava, silenciosamente, de madrugada. Não me parece.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 6 comentários