Produção de abacates, mirtilos, citrinos e hortícolas em Alcácer do Sal já ocupa 3000 hectares

Entre actuais e previstos, serão mais de 130 os furos a fornecer água para irrigar culturas de frutos exóticos no interior da Rede Natura 2000, ameaçando recursos hídricos subterrâneos.

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A cultura do abacate é uma das que mais cresce na zona de Alcácer do Sal LUSA/LUÍS FORRA
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A recente divulgação do projecto agroflorestal que o grupo Aqueterra/Expoente Frugal pretende instalar nas Herdades de Murta e Monte Novo, no concelho de Alcácer do Sal, surpreendeu pela dimensão da área que propõe ocupar com a plantação de abacates: 722,24 hectares, que vem acrescer a outros sete projectos de culturas intensivas que já estão instalados ou em vias de instalação. No seu conjunto, significa a ocupação de uma superfície superior a 3000 hectares em plena Rede Natura 2000 e da Zona Especial de Conservação (ZEC) Comporta/Galé que ocupa, no concelho de Alcácer do Sal, uma área superior a 60 mil hectares.

As implicações em termos ambientais decorrentes da densificação agrícola em território agro-silvo-pastoril e de grande sensibilidade ecológica foram explicadas ao PÚBLICO pela Sociedade Portuguesa de Botânica (SPB). “Nos últimos anos este território [Alcácer do Sal e Grândola] tem vindo a perder a sua integridade, com a complacência de quem deveria zelar pela sua conservação”, refere esta organização destacando os valores florísticos que estão a ser afectadas pelo novo modelo cultural: “14 espécies com estatuto legal de protecção, 14 endemismos lusitanos, 10 espécies ameaçadas de extinção em Portugal e 11 quase ameaçadas, para além de 41 habitats com estatuto legal de protecção, alguns deles de conservação prioritária”.

Os impactos cumulativos “são alarmantes” analisa a SPB: por exemplo, no período de 2011 a 2019, cerca de 1950 hectares de áreas naturais ou semi-naturais dentro da ZEC Comporta/Galé “foram eliminadas para agricultura intensiva de regadio”. Estes quase dois mil hectares, continham, “na sua maioria, habitats e espécies de importância comunitária (listados na Directiva Habitats), alguns deles prioritários”. E desde 2019 até ao presente outros projectos baseados na produção de mirtilos, abacates e tangerinas vieram aumentar a área ocupada por este tipo de culturas, para mais de 3000 hectares.

Os grandes espaços naturais que há poucas décadas testemunhavam a sua integridade, estão “cada vez mais confinados, fragmentados e degradados”, prossegue a SPB, salientando os impactes que estão a ser potenciados sobre os recursos hídricos nas várias explorações agrícolas de regadio que já se encontram implantadas. A monocultura de espécies que “não são prioritárias para o regime alimentar da população portuguesa pode tornar a área infértil, tendo em vista o avanço das alterações climáticas e da mudança que será necessária incutir na actividade agrícola em Portugal” adverte a Sociedade Portuguesa de Botânica.

Medidas de compensação

O Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) garantiu ao PÚBLICO que as espécies da flora legalmente protegidas identificadas na Zona Especial de Conservação (ZEC) da Comporta-Galé, “foram salvaguardados através de condicionamentos e de medidas de minimização e/ou compensação”.

E numa apreciação aos efeitos que poderão estar a ser causados pelas culturas intensivas o ICNF adianta que foram “aplicadas medidas de compensação para a instalação de culturas baseadas em frutos tropicais (abacate e mirtilos), citrinos e hortícolas, nomeadamente a obrigação de os promotores aplicarem as medidas de gestão do Plano Sectorial da Rede Natura 2000 nas áreas não utilizadas para fins agrícolas”.

Assim, as áreas ocupadas ou a ocupar, autorizadas nos diferentes projectos sujeitos a procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), “deverão totalizar cerca de 20% das áreas com ocorrência de habitats com interesse comunitário, em diversos estados de conservação”, salienta o ICNF.

São as seguintes as explorações já instaladas numa área com um raio de 10 quilómetros: Herdade da Comporta, 982 hectares (hortícolas); Herdade das Texugueiras Norte, 282 hectares (abacates); Herdade da Texugueiras Sul, 188 hectares (hortícolas); Herdade da Asseiceira, 117 hectares (produção pecuária) e Herdade da Batalha, 615 hectares (tangerinas). O ICNF esclarece que apenas o projecto agroflorestal das Herdades da Murta e Monte Novo – 722 hectares (abacates) – se encontra Avaliação de Impacte Ambiental.

No entanto, as empresas que se instalaram em Alcácer do Sal depois de 2019 adquiriram terrenos com uma área muito superior à que propõem para a produção de abacates e tangerinas. O projecto agroflorestal da Herdade da Batalha é promovido pela empresa Azul Empírico Lda., do grupo Aquaterra, adquiriu em Alcácer do Sal uma área de 2664,25 hectares, mas só vai utilizar 615,20 hectares para a produção de tangerinas, assumindo a intenção de alargar a área de exploração no futuro.

A empresa Expoente Frugal Lda., que também integra o grupo Aquaterra, adquiriu as herdades de Murta e Monte Novo, com uma área conjunta de 2402,10 hectares, para a produção de abacates em 722,24 hectares, deixando para a produção florestal 1415,85 hectares. Significa que só estes dois projectos mantêm, em reserva, 3730 hectares que poderão, numa fase posterior, vir a aumentar as áreas com novas culturas, que recorrem a elevados débitos no consumo de água para rega subtraída dos aquíferos subterrâneos.

Níveis de água "significativamente baixos"

É este crescimento de áreas ocupadas com culturas de abacate, mirtilos, tangerinas e hortícolas que colide com as apreensões expressas na 16.ª reunião da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca realizada a 25 de Agosto. Este organismo confirma que os níveis de água subterrânea registados no ano hidrológico de 2023 permaneceram “significativamente baixos na Bacia do Tejo-Sado/Margem Esquerda do Tejo, inferiores ao percentil 20”.

Os valores piezométricos, que permitem medir o nível de um lençol freático, “apresentam uma tendência de descida, inferiores aos níveis da seca de 2005”, realçando que a situação das águas subterrâneas, no ano hidrológico de 2023, foi “mais grave que no ano de 2005 e, significativamente, mais desfavorável que na seca de 2022”. E no concelho de Alcácer do Sal os aquíferos subterrâneos persistiam em apresentar “valores inferiores ao normal ao longo dos últimos nove anos.”

Estas situações dizem respeito a massas de água onde, “durante vários meses, e em alguns casos, mesmo anos, os níveis de água permaneceram inferiores ao percentil 20”, prossegue o documento publicado por aquele organismo. A quase totalidade dos aquíferos subterrâneos na Bacia do Tejo-Sado/Margem Esquerda do Tejo que é origem de água para abastecimento público para uma população de um milhão de habitantes mantinham-se “em situação crítica sem nunca terem conseguiram recuperar, face aos eventos pluviosos ocorridos ao longo do ano hidrológico 2022-2023”.

A situação do aquífero Tejo Sado (margem esquerda) “continua preocupante e indicia [as consequências] das extracções que estão a ocorrer nas imediações das estações” de monitorização existentes nos piezómetros, nomeadamente em Alcácer do Sal.

O “consumo insustentável de recursos hídricos subterrâneos no concelho de Alcácer do Sal” já foi o tema de uma audição na Comissão Parlamentar de Ambiente e Energia realizada a 19 de Julho de 2022, solicitada pelo Grupo Parlamentar do PSD e a pedido dos residentes no Aldeamento Turístico Herdade do Montalvo, receosos que a água lhe faltasse nas torneiras.

Alves de Sousa, presidente do conselho de administração do aldeamento de Montalvo, explicou ao PÚBLICO que o grande problema “reside na ameaça do seu esgotamento”. Embora a falta de água não seja um problema no momento, "já notamos que tem algum sabor, obrigando-nos a recorrer à água engarrafada e aos filtros", afirmou.

Sem sítio onde ficar

Outro fenómeno poderá ser associado ao modelo agrícola que está a emergir em Alcácer do Sal: “Com a chegada dos abacates, dos mirtilos e dos hortícolas desapareceu a bicharada” refere Alves de Sousa, “assistimos ao corte maciço da floresta à nossa volta e os bichos deixaram de ter sítio onde ficar”. Apenas resta o coberto vegetal nos cerca de mil hectares do aldeamento da Herdade de Montalvo que agora têm na vizinhança uma extensa plantação de mirtilos da empresa Logofruits.

Manuel Duarte Pinheiro, professor no Instituto Superior Técnico e investigador em Engenharia Civil para a Sustentabilidade, elaborou um extenso parecer que apresentou na Comissão Parlamentar do Ambiente, onde documenta o impacto das várias actividades agrícolas ao longo dos últimos anos na zona envolvente ao aldeamento da Montalvo e da sua “pressão nos recursos hídricos” locais.

Diz ter recorrido a estudos publicados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para elaborar o documento que apresentou na comissão parlamentar. Identificou os seis projectos mais significativos que desde 2015 foram instalados na envolvente da Herdade do Montalvo para produzir mirtilo, abacate, milho, ervilha, abóbora, couve, nabos, cenoura, tremocilho e trigo.

O total de água consumida nestas produções é de “cerca de seis milhões de metros cúbicos” em circunstâncias normais, mas “sabemos que as necessidades hídricas aumentam à medida que as temperaturas sobem, e desta forma as necessidades de água poderão ser superiores em períodos de stress hídrico”, assinala.

A preocupação maior concentra-se nas disponibilidades de água, “que é cada vez menos para o futuro”, suportando o seu argumento nos estudos hidrogeológicos elaborados para zona. No espaço de uma década o nível piezométrico dos aquíferos pode ter descido 10, 20, 40 e até chegar aos 80 metros.

O licenciamento destes projectos “coloca em risco a água para as pessoas” admite Manuel Pinheiro, afirmando que a “situação piorou e pelos dados que tenho piorou substancialmente”. Desde 2019, acentua, “as extracções aumentaram cerca de 50% que equivale à água que pode ser consumida por 230 mil pessoas.”

Sem monitorização externa

No levantamento efectuado por Manuel Duarte Pinheiro, com base na informação recolhida na APA, nas explorações que já se encontram em fase de produção juntamente com as que estão em avaliação, prevê-se a abertura de 131 furos que suportam as necessidades de quase todo o sistema de rega avaliadas em mais de 18 milhões de metros cúbicos anuais.

E, no entanto, a monitorização dos recursos hídricos que são extraídos “é feita pelas pessoas que possuem os furos”, assinalando que os meios disponíveis na administração pública para fazer o acompanhamento pós avaliação ambiental são insuficientes. “Nem sequer há dinheiro para pagar a deslocação dos técnicos ao terreno o que revela a fragilidade do sistema que temos” acentua o investigador.

Confrontado com o teor das afirmações proferidas por Manuel Pinheiro, o director regional de Agricultura e Pescas do Alentejo, José Godinho Calado, considerou que “o estudo apresentado por Manuel Duarte Pinheiro é correcto”, mas justificava um reparo: é verdade que podemos destinar a água para o consumo de 100 mil pessoas, mas depois não temos alimentos. Indo mais longe na sua análise em tempo de escassez de água, Godinho Calado explica: “Eu não tenho de ter água só para a população. Tenho de ter recursos hídricos para produzir alimentos para as populações”. E recorre a um exemplo pessoal. “Ainda hoje não bebi água, mas já ingeri duas refeições...”

Face aos alertas avançados por Manuel Pinheiro, o director regional acredita que o consumo de água em Alcácer “não será problemática fase aos empreendimentos que existem”.

O mesmo ponto de vista é partilhado por outro dos participantes na audição: o director da Administração da Região Hidrográfica do Alentejo/Agência Portuguesa do Ambiente, André Matoso. “Todos temos a mesma preocupação revelada no estudo, mas corre-se o risco de nos deixar alarmados sobre o consumo de recursos hídricos no concelho de Alcácer do Sal”, sustenta. Para dar suporte à sua afirmação, diz que em Alcácer do Sal a disponibilidade hídrica subterrânea é 85 hectómetros cúbicos (hm3).

“Há água suficiente”

Presidente da Câmara de Alcácer do Sal do Sal, Vítor Proença vinha munido de um documento da empresa Águas Públicas do Alentejo onde se garante que, de “uma forma geral, não são verificados rebaixamentos nos aquíferos” destinados ao consumo humano. Contrariando o panorama crítico apresentado por Manuel Pinheiro, o autarca garante que “há água suficiente naquela zona e até para mais produções e para novas explorações”

Referindo-se aos terrenos alienados à Rede Natura 2000 e agora ocupados por culturas intensivas, Vítor Proença recorda que o território era preenchido por “terrenos de charneca e de pântano” que foi transformado ao longo de décadas numa zona florestal e agro-florestal que “permite usos agrícolas de forma condicionada, como tem acontecido” defende.

A Rede Natura 2000 na Comporta/Galé estende-se por 32 mil hectares, lembra o presidente da Zero, Francisco Ferreira, convidado a participar na audição da comissão parlamentar do Ambiente. Os projectos agrícolas de culturas intensivas vieram “desvirtuar os objectivos da conservação da natureza, numa área que ainda não tem plano de gestão”. E apesar de violarem a legislação comunitária e europeia e nacional, “cerca de 6000 hectares de áreas protegidas estão ocupados com produção agrícola e projectos turísticos”, conclui o dirigente ambientalista.

Em Málaga, refere o jornal espanhol El País, nove em cada 10 explorações de abacate e manga sofreram perdas devido à seca e à falta de água para a rega. A última campanha a produção diminuiu 80%, forçando alguns agricultores a abandonar este tipo de culturas.

O PÚBLICO colocou um conjunto de questões à APA, à Câmara de Alcácer do Sal e às empresas Aquaterra, Granfer e Logofruits, mas até ao fecho da edição não houve reposta.

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